Madeira: o ingrediente x

Aos cupins de plantão, boas novas! Nosso tema deste mês é "madeira". Três brancos e três tintos, amadurecidos, para combinar com dois pratos inéditos (e deliciosos), criados pela chef Flávia Quaresma, especialmente para o enogourmet.

por Marcelo Copello

fotos: Christian Burgos

O armazenamento de vinho em recipientes lenhosos é coisa antiga e remonta ao medievo. O assunto, contudo, não poderia ser mais atual. Fala-se muito do excesso de sabores amadeirados nos vinhos, do estilo "picolé de carvalho", que chama a atenção e agrada a muitos. Queremos aqui lembrar que, exageros à parte, 9 entre 10 grandes vinhos amadurecem longamente em carvalho, e mostrar como combinar pratos com esse tipo de bebida.

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fotos: Christian Burgos
fotos: Christian Burgos

A tarefa não é simples, já que tintos e brancos barricados têm nível elevado de sabor e ganham complexidade com seu estágio de amadurecimento. Para essa exigente missão, chamamos uma virtuose das panelas, a chef Flávia Quaresma. Quem freqüenta seu restaurante, o Carême (Visconde de Caravelas 113, Botafogo-RJ, tel.: 21 2537-2274), ou sua escola, a Q Criações Gastronômicas (logo ao lado, no número 199, onde realizamos o evento), sabe que a qualidade de seu trabalho só é rivalizado por sua simpatia. Para testar nossas experimentações, ADEGA convidou: Belisa Ribeiro - jornalista da rádio Band News; Armando Romanelli - renomado pintor brasileiro e Maria Luci Romanelli, sua esposa; Sérgio Queiroz - Diretor de Marketing Editora JB (Jornal do Brasil-Gazeta Mercantil-Forbes) e Christian Burgos - Publisher de ADEGA.

Solicitei à Flávia que criasse dois pratos inéditos, um para os brancos e outro para os tintos. Selecionei um trio de brancos fermentados e posteriormente amadurecidos de 6 meses a 1 ano em carvalho. Todos com um equilíbrio onde a maciez prevalece sobre a acidez, untuosos e encorpados, com aromas típicos de manteiga, baunilha, tostados, frutas maduras (abacaxi, pêssego etc), coco queimado, amêndoas etc. Pedi à Flávia então que preparasse um peixe estruturado, de águas frias, com um molho cremoso e toques de especiarias doces. Ela optou por um salmão cozido a vácuo, a 50°C, de modo que ficou semi-crú, servido com legumes amanteigados e espuma de baunilha.

Os tintos escolhidos (vejam minhas opções em "Vinhos da noite"), foram todos com alguma idade, de 5 a 15 anos, com 2 a 4 anos em madeira. Ou seja, todos com taninos afinados, com toques de evolução e muitas especiarias nos aromas. Minha sugestão para a chef foi preparar uma carne de caça temperada com muitas especiarias, com alto teor e complexidade de sabor, mas não muito gordurosa, pois a acidez desses vinhos já não deve ser tão boa. Flávia escolheu um lombo de javali, com pó de porcini. (veja receita mais adiante).

Antes de provar essas ousadias, solicitei à Guilherme Corrêa, um especialista em harmonização, que nos desse uma palavrinha sobre o assunto:

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A teoria
Por Guilherme Corrêa*

Nas últimas décadas assistimos as barricas de carvalho passarem de meras coadjuvantes para verdadeiras protagonistas na enologia mundial, fenômeno que chegou ao paroxismo com a entrada e crescimento do Novo Mundo no mercado internacional, através dos seus Chardonnays, Cabernets, Merlots, Syrahs etc., todos eles apelando para uma intensa manifestação da fruta varietal, bem como do caráter especiado da madeira. É bem verdade que nos últimos anos os "winemakers" novo-mundistas estão buscando um equilíbrio maior no uso do carvalho, de forma que seus aportes gusto-olfativos interajam com maior sutileza junto à fruta e à (cada vez mais almejada) expressão do caráter regional dos vinhos.

Além dos diversos componentes de sabor que a madeira empresta ao vinho, como as lactonas (carvalho, coco), o eugenol (cravo), o aldeído vanílico (baunilha), os aldeídos furânicos (praliné, caramelo) e o etil-guaiacol (defumado, especiarias), apenas para citar alguns, a fermentação ou envelhecimento dos vinhos no carvalho também o enriquece em compostos fenólicos (taninos) oriundos da madeira. Podemos concluir que a madeira aumenta a estrutura gusto-olfativa do vinho, que, por conseguinte, necessitará de igual incremento no volume gusto-olfativo do prato, através de um acréscimo na sua aromaticidade (bulbos aromáticos, ervas frescas, chocolate, café, queijos curados ou azuis) ou, melhor ainda, na sua especiadura (especiarias em geral), já que as substâncias odoríferas do carvalho caminham nessa direção.

No caso dos vinhos brancos fermentados em carvalho, é também sabido que o longo período sobre as borras ou leveduras que se depositam - e que são constantemente movidas na técnica da "batonnage" - enriquece o vinho com compostos nitrogenados, polissacarídeos e glicoproteínas. Estes elementos contribuem não só do ponto de vista olfativo, mas trazem corpo e sensação tátil de maciez ao vinho. A textura mais untuosa dos brancos barricados convida a textura amanteigada e cremosa de alguns molhos, e, ao mesmo tempo, amortece por contraposição elementos de dureza perceptíveis em algumas preparações culinárias: riqueza em sal, tendência ao amargor e tendência à acidez.

*Guilherme Corrêa é sommelier formado pela Associazione Italiana Sommeliers.

Os vinhos da noite

Brancos

Louis Sémillon 2001, Henschke, Éden Valley-Austrália (Expand, R$ 131,56). Fermentado em barricas de carvalho americano onde permanece por seis meses. Paradoxalmente, dos brancos, é o que menos tempo fica em madeira, mas o que mostra mais os aromas advindos do carvalho.Amarelo dourado, já com evolução na cor. Aromas intensos e de boa complexidade, com frutas muito maduras (pêra, damasco), cítricos, tostados, amêndoas, pêras, flores, baunilha. Paladar untuoso, quente e macio, longo. Parece estar em seu auge, não deve evoluir mais.

Clos Floridene Graves blanc 2004, Denis & Florence Dubourdieu, Bordeaux França (Premium, R$ 119,50). Elaborado com Sémillon e Sauvignon Blanc, fermentado em barricas francesas, onde permanece por 11 meses. Amarelo palha com reflexos dourados. Aromas delicados, com pureza e definição, mostrando frutas, especiarias, minerais. A madeira aparece pouco. Paladar de médio corpo (o menos encorpado dos brancos), com 12,5% de álcool, boa acidez e esplêndido equilíbrio. Um branco de guarda.

Chardonnay Single Vineyard 2004, De Martino, Limarí Valley-Chile (Decanter, US$ 31,40). Fermentado em barricas de carvalho francês, onde permanece por 12 meses. Amarelo palha brilhante, com reflexos dourados. Ótimo ataque aromático, com frutas maduras (maçã, abacaxi, pêssego), madeira muito bem colocada, toque mineral elegante. O mais estruturado dos brancos da prova, com 14,5% de álcool e acidez pronunciada. Deve se beneficiar de mais alguns meses em garrafa.

Tintos

Tauleto Sangiovese 2001, Umberto Cesari, Emilia Romagna-Itália (World Wine R$ 179). Elaborado com 90% Sangiovese Grosso e 10% Bursona Longanesi, amadurecido 24 meses em barris franceses e americanos de 225 e 500 litros. Rubi muito escuro com reflexos violáceos. O mais jovem e frutado dos tintos, com aromas de cerejas maduras e cassis, madeira aparece bastante, com baunilha, alcaçuz, tostados, cravo, toque de frescor de menta. Paladar de grande estrutura, 14% de álcool, taninos presentes, média persistência.

The Menzies Cabernet Sauvignon 1998, Yalumba, Coonawarra-Austrália (KMM R$ 324). 100% Cabernet Sauvignon, com 24 meses em barricas de carvalho francês (1/3 novas, 1/3 com 1 e 1/3 com 2 anos de uso). Vermelho granada escuro com reflexos alaranjados. Aromas etéreos, mesclando muita madeira e especiarias a frutas secas, couro e tabaco. Paladar potente, com 14,5% de álcool e taninos ainda presentes. Um dos maiores Cabernets da Austrália em uma grande safra.

Valduero Gran Reserva 1991, Ribera Del Duero-Espanha (Península, R$ 425). 100% Tempranillo, amadurecido por nada menos que 42 meses em barricas. Vermelho alaranjado entre claro e escuro. Aromas intensos de madeiras (carvalho, cedro), tabaco, tartufo, cogumelo seco, terra molhada, couro, notas balsâmicas. Paladar de médio-bom corpo, textura macia e envolvente, taninos bem evoluídos, totalmente pronto.

Tabela de notas
Extraordinário ( de 95 a 100 pontos)
(93 a 94)
Excelente (90 a 92)
(88 a 89)

Muito Bom

(85 a 87)
(83 a 84)
Bom (80 a 82)
(76 a 79)
Médio (70 a 79)(70 a 75)
-Fraco (50 a 69)(50 a 69)
= Beber
= Beber ou Guardar
= Guardar
Obs: preços aproximados no varejo, sujeitos à variação.

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fotos: Christian Burgos
Da esquerda para direita: o casal Maria Luci Romanelli e Armando Romanelli; Christian Burgos; Sérgio Queiroz; Marcelo Copello; Flávia Quaresma e Belisa Ribeiro.

A prática

SALMÃO MI-CUIT SOBRE LEGUMES VERDES, ESPUMA DE BAUNILHA DEFUMADA

O prato de salmão pendia claramente para um conjunto macio, perfumado e cremoso, acentuado pelos legumes amanteigados e pela espuma de baunilha. Todos os vinhos estavam excelentes e foram bem com a receita, mas um sobressaiu de forma quase unânime. O Sémillon australiano foi beneficiado por sua idade (era o mais velho dos brancos), sua maciez pronunciada, menor acidez e seu perfil aromático. Para cinco dos sete avaliadores, essa foi a melhor combinação. Christian optou pelo Bordeaux por sua riqueza aromática, enquanto Flávia confessou ser fã dos Chardonnays, escolhendo esse. Minha escolha teria sido o chileno e sua maior acidez, estivesse o salmão só, mas o acréscimo dos acompanhamentos aumentou a untuosidade e o perfil aromático do conjunto, pendendo para o amendoado australiano.

LOMBO DE JAVALI COM PÓ DE PORCINI, RIZZOTO DE COGUMELO COM RAGOÛT DE JAVALI E MOLHO DE VINHO TINTO COM ESPECIARIAS

Um lombo de javali, com toda essa escolta, não é um prato trivial, mas os vinhos estavam à altura. O vinho espanhol encantou e foi reverenciado por todos. Para Sérgio, esse foi o vinho da noite e a melhor combinação. Para os demais, esse 1991 ficaria melhor só, pois, por ser um vinho mais velho e mais delicado, ficou aquém do nível de sabor do prato. Lucy, Christian e Romanelli não tiveram dúvida em escolher o Tauleto. Esse italiano mais jovem e frutado, de estilo moderno, trazia implícita certa doçura, que ficou muito bem com o molho de vinho tinto de fundo adocicado. O australiano reinou na opinião de Belisa, Fávia e eu. Achamos que a força do italiano competia com o prato, e os perfis aromáticos não combinavam. Claramente o nível de sabor e aromas do australiano formava o conjunto mais adequado ao javali, ameaçado apenas pelo molho de vinho tinto, que fazia o preparo pender para a fruta e juventude do italiano. Nossa conclusão foi,

Nossa conclusão foi, primeiro que os dois pratos apresentados devem entrar urgentemente para o cardápio do Carême, e, depois, que o carvalho é um grande tempero no vinho e no prato, inspirando grandes casamentos. Agora é bater três vezes na madeira e torcer para que o próximo Enogourrmet seja tão bom quanto este!

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