Ferrari, Lamborghini e Maserati, a região de Módena (e da terra do Lambrusco) merece destaque por sua enogastronomia cheia de tradição
por Por Wendy Elago
A cidade de Módena não é a mais óbvia para quem viaja para a Itália interessado em vinhos, afinal, a bebida local é o Lambrusco, aquele frisante tinto doce, pouco alcoólico e barato, servido em festas para quem não é exatamente consumidor de vinho, certo?
Errado. É bem verdade que esse produto ainda é um dos vinhos mais populares produzidos na Itália e que milhões e milhões de litros são exportados todos os anos para países como Estados Unidos, Inglaterra, Rússia e, é lógico, o Brasil, mas o fato é que ele é muito diferente do “verdadeiro Lambrusco”, um frisante seco e com acidez pungente consumido há séculos na região de Módena, acompanhando queijos e carne de porco.
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Localizada no coração da Emilia-Romagna, Módena teria sido fundada pelos etruscos entre os séculos XI e IX a.C. Sua “Piazza Grande” é considerada Patrimônio Mundial pela UNESCO e, além da bela arquitetura – como o Duomo e a Abadia Militar de Nonantola – e dos carros esportivos, lá estão fábricas de Ferrari, Maserati e Lamborghini.
Seus atrativos estão ligados à boa mesa, por conta de especialidades locais como o “Aceto Balsamico Tradizionale di Modena”, o “Parmigiano Reggiano”, o “Prosciutto di Modena”, o zampone, o tortellini e os ótimos embutidos. Sem esquecer que a província é tida como o berço do Lambrusco.
Lambrusco é o nome do vinho e também da uva tinta típica da região, já conhecida e cultivada pelos etruscos e, mais tarde, também pelos romanos, que a valorizavam por conta de sua alta produtividade. O primeiro registro escrito sobre Lambrusco de que se tem notícia está no clássico compêndio “Naturalis Historia”, do historiador e oficial romano Plínio, o Velho, que viveu entre os anos de 23 e 79 d.C.
De fato, a partir da década de 1960, quando foi implementada a pasteurização na produção do Lambrusco, o produto pôde ser estabilizado e, assim, exportado, adquirindo, ainda, um perfil mais doce e mais atraente para mercados emergentes.
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Foi justamente esse estilo doce e frisante que tornou o Lambrusco popular no mundo. Entretanto, essa não é a real face desse vinho, e mais, foi esse caráter “bastante doce e bem barato” que, mais tarde, o fez ser mal visto e rejeitado pelos consumidores exigentes.
Atualmente, os produtores sérios lutam para que a imagem do Lambrusco seja revitalizada, para que o mercado conheça-o como frisante seco, de acidez intensa e com boa relação qualidade-preço (e não ordinariamente barato).
O “Consorzio Tutela del Lambrusco di Modena” vem implementando regulações mais rigorosas que incluem controle de qualidade, tanto no vinhedo quanto na cantina, modernização do processo de vinificação e atenção especial à marca e às embalagens.
Essa “reconstrução” do Lambrusco inclui, ainda, a ideia ousada de abandonar internacionalmente o nome genérico “Lambrusco”, tornando os vinhos conhecidos pelo nome de sua DOP. Por exemplo, ao invés de um frisante Lambrusco Grasparossa di Castelvetro ser chamado de Lambrusco, passaria a ser denominado de Grasparossa. O objetivo é resgatar o conceito de um vinho de terroir. Foi desenvolvida, inclusive, uma taça própria para o serviço do vinho, que tem a haste vermelha, referindo-se à cor da bebida.
Produção de LambruscoComo regra geral, Lambruscos são produzidos pelo método Charmat. As uvas são colhidas manualmente, prensadas suavemente e permanecem por até sete dias em contato com as cascas, seguindo para fermentação por duas semanas em cubas de aço inoxidável. A segunda fermentação se dá em tanques de inox, com temperatura e pressão controladas. Normalmente, em duas semanas são obtidos o teor de álcool e o perlage ideais. Mais recentemente, algumas vinícolas têm utilizado o método tradicional em alguns vinhos de suas linhas, na tentativa de obter melhor longevidade para seu produto. |
As “Denominaziones di Origine Protetta” (DOP) são:
Além das cepas destinadas à produção de vinho, em Módena encontram-se muitos vinhedos de Trebbiano que, ao contrário de Lambrusco, são principalmente usados para a obtenção de outra especialidade da região: o aceto balsâmico.
Mais uma vez, o produto que costuma chegar ao Brasil não é o tradicional. Na verdade, o Aceto Balsamico Tradizionale di Modena, cujas origens datam do século XI, é também um produto DOP, regulado pelo “Consortium Producers Antique Acetaie”, que disciplina e fiscaliza todas as etapas de produção do “ouro negro de Módena”.
O Aceto Balsamico Tradizionale di Modena DOP (ABTM) é obtido unicamente a partir de mosto cozido de uvas Trebbiano.
O mosto da uva é cozido em temperatura aproximada de 70oC – não pode ferver – até que seu volume seja reduzido a um terço do original. Então, é transferido para um recipiente coberto com tecido, onde permanece fermentando pelo período de um ano e meio a dois anos.
A partir daí, essa base segue para a fase de envelhecimento que se dá em uma série de barris – no mínimo cinco – de madeira de diversos tipos e tamanhos, dispostos em ordem decrescente, chamada “bateria”.
O mosto cozido e fermentado é colocado no maior dos barris, o “barril-mãe”. A menos que se esteja começando uma nova bateria, esse barril-mãe já está com aproximadamente metade da capacidade preenchida pela base obtida no ano anterior.
Com o aceto madre “pronto”, continua-se o processo de obtenção do balsâmico. O produtor retira em torno de 10% da capacidade do menor – e último – barril da bateria. Esse é o aceto que será consumido ou comercializado.
Então, completa-o com conteúdo do segundo barril da bateria, que é completado com conteúdo do terceiro barril e assim por diante, até que o último seja completado com o conteúdo do barril-mãe.
Esse é um processo contínuo e a maioria das acetaias – como são chamadas as casas produtoras de balsâmico – passa de geração para geração, por isso, é possível ver baterias com mais de um século de história.
Na verdade, para obter a certificação DOP, um aceto balsâmico deve ter passado pelo processo de envelhecimento em barris por, pelo menos, 12 anos (afinatto) ou 25 anos (extra vecchio), e se tornado bastante denso.
As baterias são sempre mantidas em temperatura ambiente. Isso porque, a variação durante o ano é importantíssima na produção. Durante o inverno, o produto repousa e adquire os aromas e a complexidade da madeira do recipiente onde estiver acondicionado; no verão, ele evapora e se concentra dentro do barril.
Ao final do processo de envelhecimento, cada acetaia leva seu produto até o Consórcio, onde ele é analisado nos aspectos visual, olfativo e também degustado por um grupo de cinco experts.
Obtendo a certificação DOP, o produto é envasado no Consórcio – e não pelo produtor – em garrafas padrão de 100 ml, cujo design foi desenvolvido por Giorgetto Giugiaro, conhecido por desenhar uma série de famosos automóveis italianos. Ao final, o aceto é devolvido ao produtor para ser rotulado. Todo esse procedimento visa controlar e garantir a qualidade do aceto comercializado como Aceto Balsamico Tradizionale di Modena DOP.
Em algumas acetaias, é possível comprar direto do produtor acetos com mais de 50 ou 100 anos, obviamente a preços que correspondem a todo o trabalho e tradição que estão naquele produto. Para se ter uma ideia, uma garrafinha de 100 ml de ABTM de 50 anos, comprada na acetaia, custa em torno de 100 euros. Um produto tão nobre não deve ser usado como condimento; na verdade, recomenda-se que seja adicionado em pequena quantidade na finalização de pratos, tais como filés, carne de porco, risotos ou, como é bastante comum em Módena, provado sobre queijo Parmigiano Reggiano, morangos e até sorvete de baunilha.
Obviamente, as acetaias não produzem apenas Aceto Balsamico Tradizionale di Modena DOP. Há uma categoria inferior – mas ainda de alta qualidade e destinado a uso diverso do ABTM – que leva, além do mosto cozido, vinagre de vinho, o chamado Aceto Balsamico IGP, que também deve seguir regras determinadas pelo Consórcio.
Os vinagres balsâmicos mais simples e industriais encontrados no mundo, inclusive no Brasil, costumam ter grande porcentagem de vinagre em sua composição e levar caramelo e aromatizantes no lugar do mosto cozido e são, de fato, condimentos.
Não é possível determinar o que surgiu primeiro em Módena: a tradicional culinária ou o Lambrusco. O mais provável é que os dois tenham se desenvolvido paralelamente. O que se sabe, com certeza, é que o casamento entre a cozinha e a bebida típicas da região é perfeito.
A gastronomia modanesa é bastante rica, baseada em carne suína – especialmente de raça maiale – um pouco calórica e com considerável grau de gordura, embora não seja sentido. Uma especialidade é servir cortes suínos em molho à base de aceto balsâmico, uma combinação ótima.
Em todos os restaurantes da região, o tortellini in brodo é onipresente. Pequeninos, delicadamente moldados um a um, com recheio à base de mortadela, carne suína e especiarias, e servidos em um caldo leve e saboroso, são irresistíveis.
A dica é acrescentar um pouco do Lambrusco da sua taça direto no prato, para elevar o sabor do brodo. Também onipresente é o gnocco frito.
Em todo lugar é possível pedir uma porção dos “travesseirinhos” – são como um primo distante do nosso pastel, mas a massa é mais leve e menos crocante e o gnocco não leva recheio – cobertos ainda quentes com uma finíssima fatia de prosciutto. Não dá para enjoar.
Iguaria local, o Zampone (pé suíno “recheado” com carne suína condimentada) não pode deixar de ser provado, ainda que inicialmente se torça o nariz para ele. São daqueles pratos que ficam na memória. Risotos parmigianos são elevados por um fio de aceto balsâmico da melhor qualidade. As massas recheadas com ricota são delicadas e muito saborosas. Aqui, os frescos ingredientes locais fazem toda a diferença.
A “salumeria” é um capítulo à parte: lardo, copa, salames, e, claro, Prosciutto di Modena; tudo muito rico, com cura e sal precisos e harmonia entre a carne e a gordura macia. Para quem aprecia queijos, além do Parmigiano Reggiano, a região produz leves e fresquíssimas ricotas, que mais parecem uma nuvem na boca, e também stracchino, por vezes servido com batatas espremidas, azeite e balsâmico. A acidez pronunciada e o caráter frisante do Lambrusco harmonizam por contraste com tudo isso, criando um conjunto agradável e, por que não dizer, auxiliador da digestão.
Fazendo um paralelo com nossa cultura, é possível imaginar que uma taça de Lambrusco DOP acompanharia muito bem um prato de feijoada. Certamente, também cairia como uma luva com um bom leitão mineiro. Vale testar.
Além do Lambrusco e do Aceto Balsamico Tradizionale, Módena confere certificações a outros produtos de excelência, dentre eles, o queijo Parmigiano Reggiano DOP e o Prosciutto di Modena DOP. Na verdade, essas duas iguarias são também reguladas por consórcios próprios e devem obedecer a uma série de especificações, que vão desde a seleção de matéria-prima até o processo de produção e maturação, para obterem o selo de qualidade e serem colocadas no mercado.
O Consórcio do Parmigiano Reggiano existe desde 1934 e reúne todos os produtores da região determinada (províncias de Parma, Reggio Emilia, Módena, Mântua e Bolonha). Os ingredientes são todos naturais, as vacas têm uma dieta especial e o leite é colhido duas vezes ao dia, sendo que são necessários 16 litros de leite para a obtenção de 1 quilo de queijo parmesão.
Os métodos de produção e maturação são bastante precisos e apenas os queijos que tiverem atendido rigorosamente a todos os parâmetros e tenham sido aprovados – cada um dos parmesões produzidos é analisado pelo Consórcio – recebem o selo DOP.
Também o Prosciutto di Modena conta com órgão regulador, o Consórcio del Prosciutto di Modena. Tradicionalmente, o presunto era curado em temperatura ambiente, durante todo o ano, sofrendo as alterações naturais de temperatura.
Hoje os prosciuttifícios têm suas produções em câmaras que reproduzem as estações do ano. Apenas duas variedades de porco branco, vindas de criadores aprovados e de regiões determinadas do centro-norte da Itália, são utilizadas.
A alimentação desses animais é regulamentada pela DOP – normalmente composta de cereais e restos da produção de Parmigiano Reggiano –, assim como todas as fases do processo de cura. Toda a produção leva em torno de 14 meses quando cada pernil é avaliado pela comissão para ser certificado e marcado como DOP.
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