"O vinho é composto de humor líquido e luz" Galileu Galilei
por Fábio Farah
“Eppur su Muove”, teria sussurrado Galileu, após ser julgado pelo Tribunal do Santo Ofício. Condenado a negar publicamente suas teses, o cientista teve a prisão decretada pela Santa Sé. Para os homens da época, as idéias de Galileu eram mais do que a negação das Sagradas Escrituras. Eram a prova de que Deus tinha relegado seus filhos a um plano secundário. A Terra se movia ao redor do Sol, submissa e dócil. Essa conclusão fazia de Galileu não apenas um excelente cientista. Ele era o homem cruel que tirava da humanidade o prazer de habitar o centro do universo. Mas poucos sabiam que atrás daquele homem escondia-se um excepcional gourmet e apreciador de vinhos.
As correspondências com o discípulo Benedetto Castelli traziam, entre observações científicas, comentários sobre queijos e a descrição – com notas – dos melhores vinhos da época. Isso mesmo, além de pai da Física moderna, Galileu pode ser considerado o pai dos sistemas contemporâneos para classificar, em números, a qualidade da bebida.
Ao aproximar-me do túmulo de Galileu, na Santa Croce, após ter encontrado Michelangelo (“O Divino Michelangelo”, publicada na edição 22 de ADEGA), estava com o livro Dialogo dei Massimi Sistemi (em português, Diálogo sobre os Grandes Sistemas do Universo), uma garrafa do “Chianti Classico Castello di Brolio 1999”, duas taças e muitas respostas. “Eppur su Muove” (em português, Contudo, Ela – a Terra – se move): a frase, possivelmente apócrifa, estava inscrita no mármore. Acima, erguia-se o busto de Galileu com os olhos no Firmamento, a mão direita segurando uma luneta e a esquerda repousando sobre uma esfera. Era o testemunho de que a verdade científica tinha triunfado sobre o fanatismo religioso. No entanto, ele só foi oficialmente absolvido pela Igreja Católica 341 anos após sua morte, ou seja, em 1999.
Túmulo de Galileu Galilei em Santa Croce |
Folheei o livro escrito por ele. “O que Galileu acharia das Leis de Newton? E da Teoria da Relatividade?”, questionei, abrindo a garrafa de vinho. Ao observar o líquido dançar na taça, lembrei que o termômetro estava entre as inúmeras invenções do cientista. Em sua versão primitiva, o instrumento levava vinho no bulbo, em vez de mercúrio.
Silêncio. Já havia bebido duas taças e estava pronto para deixar o lugar quando fui surpreendido por uma voz grave:
“Quem está aí?”. “Quer um pouco de vinho?”, estendi a taça na direção daquele homem. Após tatear o espaço vazio, ele segurou-a com firmeza, parecendo guiar-se unicamente pela minha voz e indiferente à parca iluminação do candeeiro. A morte não havia curado a cegueira do célebre cientista. Fiz uma pequena reverência ao concluir que estava diante de Galileu. “O vinho é composto de humor líquido e luz”, disse-me. Em seguida, girou a taça e sentiu os aromas do vinho. “Glorioso, divino!”, exclamou. Após sorvê-lo, caiu na gargalhada. “Luz. Sempre soube que o vinho era milagroso. Estava esperando o frasco certo. Frasco esquisito”, concluiu, examinando a garrafa nas mãos com uma expressão de encantamento nos olhos. E prosseguiu: “Os homens são como frascos de vinho. Examine os frascos em uma taverna, antes de beber vinho tinto. Alguns quase não têm decoração. Estão empoeirados e despojados... Mas cheias de um vinho que inspira os bebedores a cantá-lo chamando- o de glorioso e divino. Depois, repare em outros frascos com lindos rótulos. Ao experimentá-los, você vai ver que estão cheios de ar ou perfume. Esses frascos só servem para se urinar dentro deles”.
Aquele conselho bem-humorado e genial fez-me rir, imaginando as garrafas nas quais urinaria e as pessoas “cheias de ar” que conhecia. “De onde você vem?”, questionou Galileu. “Do futuro”, respondi, desconhecendo resposta mais apropriada. “Como isso é possível?”, indagou, incrédulo. “No mesmo ano da safra deste vinho, você foi absolvido pelo papa”, revelei a ele. “O papa sabia que eu estava certo. Meu julgamento foi uma encenação. Quer prisão melhor do que a minha? Cinco aposentos com vista para os jardins do Vaticano e um mordomo para cuidar das refeições e do vinho”, disse, referindo-se à sua “dura” pena. “Minhas idéias prevaleceram?”, prosseguiu ansioso. “Grandes cientistas apoiaram-se nelas. Um deles afirmou: ‘Se pude ver mais longe foi por estar sobre o ombro de gigantes’. E você era um deles”, respondi. Ele sorriu. Passos na escuridão. Dois homens inconfundíveis aproximaram-se. Isaac Newton e Albert Einstein saudaram Galileu: “Gênio, Gênio”. Após apresentar os três, o autor da Teoria da Relatividade explicou aos antecessores os avanços da Física. Afastei alguns passos. Um estrondo na direção dos cientistas atrapalhou minhas divagações. Observei, com assombro, Newton e Einstein diminuírem de tamanho e Galileu transformar- se em um gigante de cinco metros de altura. Ele colocou os dois cientistas sobre seus ombros, pegou a luneta e passou por mim apressado, cantarolando “Eppur su Muove”. Abri minha maleta e deparei com uma garrafa de vinho e o livro O Príncipe. Galileu Galilei tinha sido absolvido pela história. Era o momento de conhecer um florentino que não teve a mesma sorte: Nicolau Maquiavel.
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