ADEGA bate seu recorde e propõe uma harmonização de oito vinhos com oito pratos. Tal epopéia enogastronômica se deu na Vinheria Percussi
por Luiz Gastão Bolonhez
Para quebrar nosso recorde nesta seção de harmonização, resolvemos colocar oito vinhos ao lado de oito pratos da Vinheria Percussi. Como de praxe, o primeiro passo foi a escolha dos vinhos. A idéia era abusar da criatividade, sem preconceito, considerando produtos de todo o mundo. Fazer um Enogourmet é muito mais difícil do que parece, pois o planejamento é fundamental. O maior desafio é a harmonização entre pratos especiais ao lado de grandes vinhos. No caso da Vinheria, foi ainda mais empolgante, pois Lamberto Percussi vibra com o assunto e fez questão de interagir conosco, discutindo prato a prato e vinho a vinho, para que tivéssemos uma grande noite.
Prestes a completar 21 anos de vida, a casa é um templo dedicado à cultura da enogastronomia. Luciano tem a seu lado sua irmã Silvia, que cuida da parte culinária, também com maestria e paixão. Sob o comando dela, a cozinha foi renovada, mantendo o conceito de restaurante italiano com receitas clássicas, mas também revigoradas.
O desafio
O resumo do desafio, após o planejamento, ficou assim: uma pequena entrada, seguida de cinco pratos, passando por um dueto de queijos e finalizando com uma sobremesa. Em plena semana de véspera do carnaval, a reunião ocorreu na Vinheria, como é carinhosamente chamada por quase todos os frequentadores. Estávamos à mesa Jorge Rosa (presidente da Confederação Brasileira de Tênis), Márcia Dutra (jornalista e apresentadora de TV), Carlos Hitoshi F. Castro (executivo do setor bancário), Paula Soares (advogada), Bia Azevedo (jornalista), Christian Burgos (publisher de ADEGA) e este editor de vinhos da revista.
Champagne com nozes e castanhas
As boas-vindas à mesa começaram com Noccioline e Castagne & Tartina di Pomodoro Secco al Caprino ao lado de um delicioso e surpreendente Champagne. Traduzindo em bom português, tínhamos uma dupla de sensações sólidas composta por nozes pecan e castanhas tostadas ao lado de uma tartellete (fina fatia de massa tuille, levemente adocicada com um pouco de sementes de papoula) acompanhada por um creme de queijo de cabra. As frutas secas estavam levemente picantes, sensação que causou um belo contraponto com o lácteo do queijo de cabra que predominava no delicado canapé.
O palato de todos precisava de um vinho que tivesse frescor e, ao mesmo tempo, presença. O consorte dessa entrada foi o Angel Dust, um champagne extra dry blanc des blancs (100% Chardonnay), da região mais badalada da macro Champagne, a Côtes de Blancs que, como o nome diz, é "encosta das brancas", uma alusão a especialidade da região, a uva Chardonnay. Prato e vinho ganharam com o encontro. Carlos Hitoshi comentou: "Tudo perfeito. Delicioso começo, em que prato e vinho casaram em perfeita harmonia".
Chardonnay e tartar
Depois do começo com bolhas, tínhamos pela frente duas etapas com brancos. Na primeira, decidimos prestigiar a América do Sul e colocamos um Chardonnay de estirpe de nosso continente ao lado da Tartara di salmone con insalatina. O tartar de salmão foi preparado com raiz forte, aceto balsâmico e azeite, acompanhado com folhas de mache e endívias frisée. O casamento entre o fresco e, ao mesmo tempo, presente tartar e o leve amargor das folhas de mache e endívias foi perfeito, levando todos a uma gostosa sensação no paladar.
O conjunto do prato é fresco e leve. O Chardonnay caiu perfeitamente e todos foram unânimes em dizer que essa harmonização era de baixa dificuldade. Concordamos plenamente. Ousado, como sempre, Jorge Lacerda colocou uma importante observação, voltando ao Champagne: "Esse tartar também está ótimo com o Champagne". Bingo! Pura verdade. Isso mostra que, à mesa, a versatilidade é muito importante e, de fato, temos muitas opções de harmonização entre um prato e um vinho e vice-versa.
#Q#Branco português e badejo
O próximo encontro foi de tirar o fôlego de muitos, pois prato e vinho superaram as expectativas. Silvia, a chef, serviu Pesce alla Ligure e Zucchine, um delicioso badejo, fresquíssimo, em filés preparados com vinho branco, azeite, azeitonas pretas, toques de alecrim fresco e pinolis, em leito de miniabobrinhas. Aqui, o toque "Ligure" ficou por conta do contraste entre o amargor das azeitonas e os aromas exóticos e herbáceos do alecrim com a leve doçura das abobrinhas. Tudo embalado pelos crocantes pinolis.
Tínhamos que ter um vinho à altura. Pois bem, colocamos o Quinta das Bageiras 2005, da Bairrada, em Portugal. Um vinho denso, rico e, por incrível que pareça, ainda tânico, que casou com perfeição com o prato e ambos brilharam ainda mais, pois houve equilíbrio perfeito. Bia Azevedo comentou: "Impressionante como o vinho valorizou o prato", e emendou: "O mesmo aconteceu com o vinho, esse potente branco, que se enriqueceu com o frescor e equilíbrio do prato".
Massa ao funghi e Syrah
Depois das homenagens ao mar, partimos para comidas da montanha, do campo etc. Fomos para massa, risoto e cordeiro com polenta, nessa ordem. Todos já imaginavam que a sequência da intensidade dos pratos iria seguir em um crescente e que os vinhos teriam que obedecer a mesma toada.
A sequência começou com uma deliciosa pasta fresca da casa coberta por um creme de funghi. O prato clássico da culinária italiana, denominado Pasta fresca alla Crema di Funghi, estimulounos na fase do planejamento a sair do óbvio na harmonização. A massa fresca, em formato de largas tiras, foi elaborada com molho de funghi porcini, champignons de Paris e creme de leite fresco. Um molho de textura cremosa, suave, com toques terrosos dos cogumelos frescos e do perfume insistente dos porcini.
Aqui, uma discussão muito interessante. Para acompanhar um creme de funghi, a clássica combinação seria um Barolo ou um Barbaresco. A uva Nebbiolo parece que foi construída para acompanhar funghis de uma maneira geral, mas, com porcini, é insuperável. Pois bem, a analogia foi a seguinte: Qual seria a uva que mais casaria com o creme em questão depois da Nebbiolo? A resposta: a Syrah. Isso não é uma ciência exata, mas as características da Syrah harmonizam bem com funghi. Tanto o funghi quanto a Syrah tem profundidade e, ao mesmo tempo, elegância. Então, por que não tentar?
O parceiro escolhido para a deliciosa pasta foi um raçudo Syrah francês, um Cornas que, quando é de um bom produtor, é retinto e profundo. O prato por si já era uma harmonização perfeita, pois a massa coberta por aquele denso creme com pedaços de funghi compunha um conjunto delicioso. Quando colocamos o jovem Cornas Les Ruchets 2004, do mago Jean-Luc Colombo, parece que todos à mesa foram ao céu. O impacto do primeiro tinto da noite impressionou. Tanto prato quanto vinho era de muita personalidade e isso foi a chave para o casamento. Hitoshi concordou com nossa teoria: "Para mim, a Syrah casa mesmo muito bem com funghi porcini e, seguramente, é uma ótima opção para substituir os Nebbiolo".
Risoto de Taleggio e Chateauneuf
A segunda etapa era com mais um vinho do Rhône. Desta vez, localizado mais do sul, na pequena vila de Chateauneuf du Pape, já nas cercanias da belíssima Avignon. O escolhido foi o "blockbuster" Chateauneuf du Pape Cuvée Boisrenard 2003, da Domaine de Beaurenard, que Lamberto sugeriu harmonizar com um risoto de Taleggio com pistaches moídos. O sabor intenso do queijo com sua cremosidade foi completado pela sensação crocante provocada pelos pistaches. O prato estava muito gostoso e preparou a boca para o vinho.
Nesse caso, tínhamos que ter um vinho repleto de adjetivos e que tivesse taninos de boa qualidade. Um vinho tânico, mas ainda verde, seria um desastre aqui. Pois bem, o Chateauneuf de uma safra quentíssima estava prazeroso e muito rico. O casamento foi irretocável, segundo Bia Azevedo: "Tivemos equilíbrio e complementaridade entre o vinho e a comida".
#Q#Paleta de Cordeiro e potente espanhol
Os próximos desafios seriam harmonizar a Spalla D'Agnello in ùmido & Polenta com um vinho e dar sequência crescente de intensidade de harmonizações. A Paleta de Cordeiro foi preparada em panela, sem preocupação de tempo, com vinho tinto e um toque sutil de ervas aromáticas. Essa receita de "longa cocção" - em fogo lento -, é o segredo para uma carne muito macia e extremamente saborosa. Esta delícia foi gentilmente servida em cima de uma cama de uma deliciosa polenta de grano duro.
Prato de muita personalidade precisa de vinho com corpo e intensidade. Escolhemos o potente AlfaSpiga 2003, da Bodega O. Fournier, um espanhol de muita personalidade da Ribera del Duero. Mais um bingo, como exclamou Marcia Dutra: "Um vinho muito encorpado como esse precisa mesmo de um prato com muita personalidade... uma bela harmonização".
Queijos e Toscano?
Nesse momento já tínhamos vivido seis grandes experiências e agora teríamos um momento de mais reflexão, pois chegava à mesa um dueto de queijos. Finas fatias de um picante Pecorino romano ao lado de um cremoso Tallegio piemontês. Nesse momento, não resistimos e fomos fiéis à origem dos queijos. A decisão foi por um vinho italiano que, mesmo sendo harmonizado com queijos, tinha que ser grande e poder dar seguimento no nível dos maravilhosos vinhos que já havíamos degustado.
O escolhido foi o monumental Cepparello 2004, da Tenuta Isole e Olena, da Toscana. O fermentado por si só já era para reflexão. Paula Soares, antes que o vinho fosse servido, disse: "Esse vinho é um dos mais importantes de minha vida. É com ele que estamos acostumados a celebrar". Harmonizar vinho e queijo sempre foi, e sempre será, foco de polêmica e acertar é um desafio. Nossa harmonização foi interessante, mas poderíamos também ter combinado com um vinho doce. Porém a decisão era deixar o doce para a sobremesa. Um vinho doce por refeição é suficiente. Dois vinhos doces, em nossa opinião, seria um excesso. O Pecorino foi unanimidade como melhor harmonização ao lado do Cepparello.
#Q#Tiramisu e Tawny
Para fechar a noite, escolhemos o Porto Taylor's Tawny 20 anos. Desafiamos Lamberto: "Para estar ao lado de um néctar doce como esse, precisamos de algo com muita presença. Que tal uma sobremesa a base de chocolate?" Lamberto, sem pestanejar, escolheu uma das maiores tradições da Itália, o Tiramisu que, apesar da fama, tem muitas versões. O da casa foi preparado com mascarpone fresco, creme de leite fresco, café expresso, licor de amêndoas e biscoitos champagne.
A escolha da chef Silvia é uma receita caseira que usa biscoitos ao invés do "pan di spagna". Sem dúvida, esse detalhe dá um resultado mais fresco, com textura cremosa e boa leveza (fica bem aerado). Como foi servido em uma taça de Dry Martini, em camadas, já era diferenciado. Muito bonita a apresentação. Encerramos com uma harmonização irretocável, pois a intensidade e doçura da sobremesa foi contrabalanceada com o delicioso frescor e o forte álcool (20%) do inebriante Porto. Um delicioso, provocante e encantador "abbinamento", como diriam os italianos.