Embora traga prestígio, a DOC pode limitar a criatividade de produtores e alguns optaram por trabalhar de forma independente
por Arnaldo Grizzo
Alguns produtores não engarrafam seus vinhos como DOC, seja como um protesto ou como forma de ter maior liberdade na criação. A história da regulamentação da DOC Chianti pode ajudar a mostrar a dicotomia de pontos de vista que muitas vezes surgem nas denominações de origem.
O Chianti foi delimitada e até certo ponto regulada em 1716, porém, somente em 1967 o governo italiano criou seu sistema oficial de proteção das denominações de origem. E Chianti estava entre as primeiras a ser regulamentada.
Na época, boa parte dos produtores acreditava que a oficialização da DOC traria benesses para a região que passava por uma severa e duradoura crise socioeconômica. Alguns, contudo, não acreditavam que somente isso pudesse alterar o cenário, já que o vinho Chianti, devido à baixa qualidade, tinha ganhado uma reputação ruim no mundo todo.
“Todos tinham grandes esperanças e lembro de pensar que, se não fizéssemos algo, a DOC talvez não fosse suficiente e não fosse capaz de resolver os problemas. Todos pensaram que isso (a DOC) seria a panaceia que solucionaria todas as dificuldades. Portanto, fazer um vinho que fosse contra as regras significaria ir contra a corrente”, contou Piero Antinori, que na época passou a fazer vinhos com uvas francesas, não permitidas pelas regras de Chianti – cuja “receita” havia sido elaborada em 1872 pelo barão Bettino Ricasoli e só permitia Sangiovese, Canaiolo, Malvasia e Trebbiano.
Vinhos que contivessem algo fora disso não ganhavam o selo da DOC, sendo rebaixados para a categoria “vino di tavola”. Em 1971, Piero criou um blend com Sangiovese, Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc, denominando-o de Tignanello.
“Era um momento de crise. Se não fosse por isso, Tignanello não teria nascido. Ele era uma resposta a esse momento negativo. Buscávamos algo diferente em termos de qualidade, pois, nessa ocasião, a DOC não significava nenhum valor adicional ao vinho”, comentou. E assim nasceu um dos primeiros Supertoscanos, vinhos “fora da lei” que se tornaram ícones da região.
Isso quer dizer que os Supertoscanos são melhores do que os Chianti? Definitivamente não e há quem defenda a qualidade de Chianti com unhas e dentes, como Roberto Stucchi Prinetti, da Badia a Coltibuono, por exemplo. “Fazemos Supertoscanos só com Sangiovese”, brinca e continua: “Na época, não se podia fazer Chianti Classico com uvas de fora e não me interessava fazer, pois me agrada a elegância da Sangiovese. O movimento de variedades francesas era para dar cor, potência, estrutura, e não busco isso”. Seus Chianti estão entre os vinhos mais valorizados da Toscana.
Em denominações mais “restritivas”, qualquer tentativa fora das regras faz com que os vinhos produzidos sejam imediatamente rebaixados (ou desclassificados) às categorias de menor prestígio.
O L’Interdit, por exemplo, foi vendido como mero “Vin de Table” (vinho de mesa) na época. No entanto, até mesmo as regras francesas andaram mudando com o tempo e, em 2009, além de a nomenclatura ter mudado para “Vin de France”, houve alguns “acréscimos”.
No Vin de Table não se podia mencionar a safra e tampouco as variedades no rótulo. Com o Vin de France, isso passou a ser permitido. Além disso, mais recentemente, diversas DOCs francesas passaram a considerar algumas flexibilizações de regras como acréscimo de variedades menos tradicionais, uso de técnicas de vinificação até então banidas etc.
Uma das razões seria o enfrentamento do aquecimento global, outra certamente é o desafio “competitivo” com produtores de regiões onde há regras bem menos rígidas, especialmente no Novo Mundo, com suas denominações de origem bastante ecléticas.
Yves Cuilleron, um dos mais prestigiados produtores do Rhône afirma: “Quando você rotulava um vinho como Vin de Table, não podia mencionar a variedade de uva ou safra; agora, com Vin de France, pode. No entanto, se decidir rotular meu vinho como IGP, posso especificar que vem do Rhône. Mas Vin de France (que não permite nenhuma indicação geográfica no rótulo) me permite mais liberdade para incluir outras uvas, definir meus próprios níveis de rendimento e determinar a composição química do vinho”.
Uma das propriedades de maior prestígio a lançar um Vin de France foi o Château Palmer, de Bordeaux. Em 2004, ele criou a série Historical XIX Century Wine (que precisou ser rotulado como “Vin de Table” na época), um blend de uvas de Bordeaux com uma porção de Syrah proveniente de um vinhedo secreto no Rhône.
Outro exemplo mais recente é o do Liber Pater, atualmente um dos vinhos mais caros de Bordeaux e do mundo. Ele é feito na propriedade de Loïc Pasquet em Graves. Como o enólogo costuma usar variedades não permitidas (ditas ancestrais), seus vinhos nunca recebem o nome da região e, algumas vezes, precisam ser rotulados somente como “Vin de France”.
“Quero que meus vinhos tenham personalidade própria, e a degustação (para aprovação dos vinhos dentro de uma DOC) gira em torno da variedade da uva, e não do terroir. A noção de denominação ainda tem força na França, mas tudo que você precisa fazer é olhar para o Novo Mundo para ver que a denominação não é mais a chave principal para vender um vinho”, afirma Jeff Coutelou, produtor do Languedoc.
Como se pode perceber, diante de normas rígidas, alguns produtores podem, às vezes, decidir por “desclassificar” seus vinhos voluntariamente. Um exemplo clássico e até um pouco insólito é o de Angelo Gaja, dito rei de Barbaresco.
Apesar de ter sido um dos nomes que mais contribuiu para o desenvolvimento dos vinhos da região e do nome Barbaresco, alguns de seus principais rótulos, como Sorì Tildin, Costa Rusi e Sorì San Lorenzo, por exemplo, ficaram anos a fio sem ser DOC, pois, além da Nebbiolo, recebiam uma pequena parcela de Barbera, o que é proibido pelas regras locais. Só recentemente é que os vinhos voltaram a ser feitos 100% com Nebbiolo e assim puderam ostentar o nome da DOCG (Denominazione di origine controllata e garantita) no rótulo.
Em outras situações, contudo, os produtores são obrigados a desclassificar seus vinhos.
Em algumas regiões, há regulamentos que limitam a produção de uvas por hectare, o rendimento máximo. Então, se o produtor fizer vinhos acima da quantidade permitida, o excesso precisa ser vendido à granel ou sob um rótulo mais “genérico”. Durante muitos anos, isso foi bastante comum na Borgonha, onde vinhedos de classificação mais alta, às vezes, eram “rebaixados” devido ao rendimento.
Algumas das principais controvérsias entre produtores e conselhos reguladores das DOCs residem em disputas sobre uso de variedades proibidas ou de processos de vinificação não regulamentados (ou, às vezes, regrados demais). Por isso, produtores ditos “naturais”, por exemplo, dificilmente tendem a ter seus vinhos aceitos pelas denominações.
E não é à toa que muitas denominações mais rígidas, especialmente francesas, estão, aos poucos, tentando flexibilizar algumas regras, evoluir.
Quando a DO Vale dos Vinhedos foi finalmente registrada em 2012, ADEGA questionou os enólogos da região sobre as regras.
Na ocasião, Daniel Dalla Vale, da Casa Valduga, afirmou: “A denominação deve ser uma coisa dinâmica, que tem que evoluir. Esse é só o primeiro ponto, a partida”. Para ele e todos os ouvidos na época, a denominação era um avanço importante (e continua sendo). Flávio Pizzato, por exemplo, afirmou: “Ter uma DO indica seriedade no sentido de ter autorregulação. Mostra maturidade”.
Enfim, atualmente, produzir ou não um vinho DOC é uma decisão estratégica da vinícola. Em alguns casos, o produtor acredita que está criando algo representativo do terroir local e também se beneficia do nome do terroir no rótulo, em outros, abre mão desse direito para produzir mais livremente.
Ou seja, ter o nome de uma denominação estampada no rótulo só diz que o vinho, teoricamente, é um legítimo representante de uma determinada região, segundo as regras locais. Melhor ou pior são termos que não se aplicam.