Reação carioca ao inverno

por Marcelo Copello

O inverno nos inspira a comer bem. O solstício de 21 de junho dá início no Hemisfério Sul à estação da auto-indulgência gastronômica, das refeições pentagruélicas e da redenção aos doces e às gorduras. Hora de dar férias à balança, romper com nutricionistas e cardiologistas, e ralentar o dueto dieta-malhação até o início do próximo verão.

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Mas será que esse clima de "chutar o balde" exclui dos cardápios a clássica combinação de verão "peixe com vinho branco"? Será que, em uma cidade litorânea como o Rio de Janeiro, precisamos esperar a ENOGOURMET 56 por Marcelo Copello passagem dos meses mais frios para voltar a permitir as delícias do mar em nossos pratos? Dando início à série "Enogourmet", ADEGA prova que peixes e vinhos brancos também podem combinar com cachecol.

A cada edição com um novo tema, ADEGA visitará um restaurante, onde convidados ilustres mostrarão o lado prático da combinação de vinhos e alimentos. Sempre com embasamento teórico, sob a batuta do sommelier Guilherme Corrêa, mostraremos que a harmonização é uma ciência prática e que, somente após provar, é possível tirar conclusões.

Primeira investida
Quando se pensa em comer peixes e frutos do mar na cidade maravilhosa, a maior referência é o restaurante Satyricon, uma unanimidade localizada em Ipanema. Para essa "Reação Carioca ao Inverno" escalamos uma tropa de elite, um dream team da gastronomia local:

Luciana Fróes - jornalista e escritora, crítica de gastronomia de O Globo, autora do "Guia de Restaurantes Rio Show" (Infoglobo Comunicações Ltda, 2003);

Danusia Barbara - jornalista e escritora, autora do "Guia Danusia Barbara de Restaurantes do Rio" (Ed. Senac);

Rodolfo Garcia - publicitário da Ed. Abril e autor do livro "100 melhores receitas dos restaurantes cariocas" (Ed. Nova Fronteira);

Reinaldo Paes Barreto - diretor institucional do Jornal do Brasil, membro da confraria "Companheiros da Boa Mesa".


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O arsenal
Quatro vinhos brancos, todos encorpados, alcoólicos, um painel bastante variado representando tanto a Europa quanto o Novo Mundo, elaborados com uvas diferentes - dois com passagem em madeira e dois não. Assim armamo-nos com o Sol de Sol 2003, um Chardonnay barricado do Chile; o Gimblett Gravels Pinot Gris 2003, um neozelandês sem carvalho; o Muros de Melgaço 2003, um Alvarinho português (com madeira e bastante corpo) e, não poderia faltar, um representante da França, o alsaciano Gewurztraminer Gueberschwihr 1999, da uva Gewurztraminer, que inspira muitas paixões, mas é de difícil harmonização. (Confira a avaliação dos vinhos no Box)

Da esquerda para a direita, Luciana Fróes, Danúsia Bárbara, Bruno Tolpiakow, Reinaldo Paes Barreto, Rodolfo Garcia e Marcelo Copello

Nos dois pratos propostos procuramos manter o espírito do tema, com pratos encorpados, abarcando peixes e frutos do mar, incluindo elementos de dificuldade (e interesse) para nossa matéria, como tomate, alho, a textura e o calor dos cremes e sopas, o iodo dos peixes do mar e os aromas e a pungência das especiarias.

O primeiro prato
"Creme de Crustáceos", elaborado com scampi, lagosta, camarão, cebola, aipo, alho-poró, azeite extravirgem, manteiga, caldo de peixe e farinha de trigo, acrescido de pimenta do reino moída na hora. Inspirado em sopas tradicionais a base de peixe, como a sopa Leão Veloso ou a bouillabaisse, o creme pedia um vinho com estrutura e um perfil aromático adequado às suas especiarias.

Foi unânime que o Pinot Gris, apesar de excelente vinho, não tinha o corpo necessário, ficando ofuscado pela sopa. O Gewuztraminer foi também unanimemente rejeitado - sua maciez banalizou a viscosidade do prato e seus aromas de rosas e lichias pertencem a um universo sem lugar para os crustáceos.

A disputa ficou entre o Chardonnay e o Alvarinho, com vantagem para o segundo. Para Rodolfo Garcia, o Alvarinho foi perfeito, por seu volume de boca, sua madeira bem casada e complexidade aromática. Opinião compartilhada por Danusia Bárbara, Luciana Fróes e por mim. Danusia se disse encantada com o Pinot Gris, mas o Alvarinho seria o mais apto a enfrentar o calor e consistência cremosa da receita.


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Ninguém há de negar que a escolha de um vinho não passa apenas por critérios gastronômicos, mas também por motivos psicológicos. Assim, Luciana, que acabara de chegar de Portugal, declarou seu amor pela terra de Camões e elegeu o Alvarinho para todos os pratos. A paixão nem sempre nos cega e a escolha de Luciana tem lá suas razões. Em minha opinião, o Alvarinho foi o que melhor equilibrou a maciez necessária a enfrentar as especiarias e o leve toque de pimenta, ao mesmo tempo foi o que melhor enxugou a boca da textura do prato.

O Chardonnay também foi bem, mas o carvalho nesse vinho era mais evidente. Os crustáceos e a pimenta travaram uma guerra de egos com a madeira, que deixou um rastro no fim de boca, o que não convinha à untuosidade do preparo. Para Reinaldo Paes Barreto e Bruno Tolpiakow, proprietário do restaurante, que nos acompanhou à mesa, o predileto foi o Chardonnay. Para eles, a presença da madeira não incomodou.

Como curiosidade, eu poderia sugerir que vinhos rosados também seriam uma boa escolta para esse creme, já que os toques de iodo dos peixes e frutos do mar, que costumam brigar com o tanino dos tintos e rosados, não estavam presentes no prato.

O segundo prato
Com inspirações mediterrâneas, o segundo prato foi um "Peixe Espada à Napolitana", posta grelhada com molho de tomate, alho, orégano, azeitona, alcaparra e pimenta dedo-de-moça. Mais uma vez, o Pinot Gris e o Gewurztraminer foram logo descartados, pelos mesmos motivos do casamento anterior: falta de estrutura no primeiro vinho e falta de acidez no segundo. O Gewurztraminer, apesar de excelente, não se integrou com nenhum prato e ficou falando sozinho. Como sugestão de Reinaldo, esse seria um vinho para o cair da tarde, combinado apenas com uma conversa.

A decisão novamente ficou entre o Chardonnay e o Alvarinho, dessa vez com vantagem para o primeiro. O Alvarinho foi o eleito de Luciana e Reinaldo por ser menos encorpado, com menos acidez e menos madeira, teria valorizado mais o peixe. ENOGOURMET 58 Reação carioca no inverno

Para os outros quatro participantes da mesa, Danusia, Rodolfo, Bruno e eu, o Chardonay foi o campeão, apesar de todos os obstáculos que enfrentou. O tomate, por sua acidez, costuma ser um malcriado, mas nesse caso comportou-se bem, já que a acidez do Sol de Sol era também espetacular. O alho é um outro bad boy, que costuma fazer arruaças com o carvalho dos vinhos, resultando em sabores metálicos. Nesse caso, a convivência foi pacífica, pois nenhum dos presentes achou que o carvalho do vinho prejudicava a harmonização. Os elementos decisivos na escolha do vinho foram, no entanto, as azeitonas e alcaparras, que elevaram o sabor a um nível não alcançado pelo Alvarinho e decidiram a contenda em favor do Chardonnay. Touchê!

Os vinhos do almoço
Gimblett Gravels Pinot Gris 2003
Produtor: Trinity Hill
Origem: Hawke's Bay - Nova Zelândia
Importador: Premium
Preço: R$ 95
Uvas: Pinot Gris
Álcool: 13,5%
A uva Pinot Gris ou Pinot Grigio - literalmente Pinot cinza -, tem bagos de cor amarelo-rosada com toques acinzentados. Ela produz desde exemplares secos e acidulados até os mais doces e ricos. Os aromas típicos são especiarias, frutas tropicais e amêndoas. São também, por sua boa acidez e corpo, um coringa à mesa. Harmonizam-se com uma boa variedade de pratos, ou servem de aperitivo. Este exemplar neozelandês é excelente, muito bem equilibrado e elegante. De médio corpo, complexo, combinando muitas frutas tropicais, cítricos, com toques fl orais e minerais.


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Sol de Sol 2003
Produtor: Viña Aquitânia
Origem: Trainguem, Chile
Importador: Zahil / Vitis Trade
Preço: R$ 160
Uvas: Chardonnay
Álcool: 13.5%
O melhor Chardonnay do Chile e um dos melhores vinhos brancos da América do Sul. De cor amarelo-dourado, com carvalho aparecendo bastante, mostrando baunilha, amanteigados e tostados, além de florais e minerais que lhe dão complexidade. Sua acidez é excelente, não deixando-o cair no típico caráter enjoativo dos Chardonnays barricados do novo mundo, lembrando mais um Borgonha dos bons. Potente, equilibrado e elegante.

Muros de Melgaço 2003
Produtor: Anselmo Mendes
Origem: Minho (Vinhos Verdes), Portugal
Importador: Decanter
Preço: US$ 50,50
Uvas: Alvarinho
Álcool: 13%
Os Alvarinho do Minho normalmente são vinhos leves, frescos e jovens. O Muros de Melgaço é um pouco diferente, pois é rico e concentrado, com 13% de álcool e turbinado com 6 meses de amadurecido em barricas novas de carvalho francês. Cor palha-claro com reflexos esverdeados. Brilhante, ainda um pouco fechado no nariz, talvez precise de tempo de garrafa. Complexo e intrigante, pois mostra novos aromas a cada momento. Flores brancas, minerais, baunilha, maracujá, feno e laranja lima. Paladar macio, com bom corpo, acidez excelente, longo.

Gewurztraminer Gueberschwihr 1999
Produtor: Domaine Zind Humbrecht
Origem: Alsácia, França
Importador: Expand
Preço: R$ 263,12
Uvas: Gewurztraminer
Álcool: 14%
Esta uva é uma mutação da Traminer, do norte da Itália. O prefi xo alemão Gewürz signifi ca exótico e perfumado. O nome é difícil, mas os aromas são inconfundíveis, lembrando rosas, lichias e especiarias como gengibre e canela. No paladar seus vinhos, mesmo secos, podem dar a sensação de doçura, por seu alto teor alcoólico e baixa acidez. É talvez a casta que gera os brancos mais encorpados, sendo difícil escolher pratos para acompanhá-los. Boas combinações seriam o salmão defumado ou o queijo Munster. Zind Humbrecht é um dos nomes mais importantes da Alsacia e este exemplar é bem típico. Macio e suculento, quase sedutor, com muito pêssego, lichias, rosas, mel, abacaxi, maracujá. Boa estrutura, com 14% de álcool e longo final.


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Vinhos e peixes
Por Guilherme Corrêa*

Que incrível patrimônio de proteínas de alto valor biológico, sais minerais, vitaminas, fosfolipídios e gorduras de rápida digestão dispõe a humanidade através da ingestão da carne de peixes e frutos do mar!

Desde a forma original de comer o peixe cru, até os tempos da alta gastronomia moderna, surgiram inúmeras técnicas de cocção dos produtos ícticos, algumas que privilegiam a naturalidade dos sabores e outras mais intrusivas, que prevêem a adição de especiarias, ervas e bulbos aromáticos, molhos e cremes. As últimas objetivam resultados ricos em sabor e textura, mesmo que às vezes a custo do "gosto primário" do peixe em questão.

Logicamente, para essas receitas, a escolha deveria levar em conta o volume de sabor intrínseco da carne do peixe ou fruto do mar, ou seja, escolher um peixe de sabor delicado como um linguado e napeá-lo com um curry branco tailandês. Dessa forma, têm-se teoricamente preparações de maior estrutura, com peixes de sabor mais intenso.

Não precisa ser um enogastrônomo profissional para notar que essas preparações culinárias requerem como ponto de partida uma boa estrutura do vinho, em nível similar ao do prato degustado, para uma perfeita harmonização. A faixa que compreende os brancos encorpados, passando pelos rosés e chegando aos tintos leves seria a mais aconselhável, ficando o grupo dos brancos de bom corpo como o "porto seguro" para casamentos bem sucedidos. Não esquecendo dos espumantes.

Entre os brancos que primam por uma maior potência, podemos dividi-los em vinhos com carvalho e sem carvalho, importante no sentido de que os aportes naturais de polifenóis da madeira passam a ser um problema quando enfrentamos sopas, cremes ou molhos com muita presença de iodo (peixes marinhos, moluscos e crustáceos), que tendem a "metalizar" os polifenóis na boca, motivo pelo qual também fugimos dos tintos encorpados (taninos ficam metálicos) com esses pratos.

Entre os brancos encorpados, outro divisor de águas é o dos vinhos, cujo equilíbrio pende para o lado da maciez, e aqueles cujo equilíbrio é marcado pela dureza da acidez e sais minerais. A maciez nos brancos secos é por sua vez originada pelo seu teor alcoólico (quanto mais alto, mais macios são) e também em correlação positiva pela untuosidade conferida pelos poliálcoois (glicerina principalmente).

Brancos encorpados e muito macios devido ao grau alcoólico elevado (acima de 13,5°C) enxugam bem a suculência intrínseca de alguns peixes e moluscos, caldos, molhos à base de tomate e cremes, bem como a untuosidade derivada do emprego de gordura em estado líquido (azeites, óleos vegetais, creme de leite, manteiga derretida, etc). Brancos potentes e vibrantes pela acidez se adequam, por sua vez, com crustáceos e moluscos, pela clara tendência ao doce de suas carnes (lagostas, lagostins, cavaquinha, caranguejo e vieiras), e também podem ser importantes para emulsionar a gordura sólida na boca, existente em alguns ingredientes da receita ou em peixes definidos como gordos (com gordura acima de 8% na carne), neste caso em preparações que retêm a gordura entremeada na carne.

É necessário ajustar, de partida, a estrutura do vinho no mesmo nível do prato, e, em segundo lugar, estarmos atentos não somente ao elemento principal da receita, mas a todos os ingredientes que influenciam- na nos aspectos olfativos (aromaticidade e especiadura), gustativos (tendência à acidez, ao doce e ao amargor, sapidez e iodo) e táteis (untuosidade, suculência e gordura sólida), fundamentais para uma sintonia fina no casamento enogastronômico.

*Guilherme Corrêa é sommelier formado pela Associazione Italiana Sommeliers

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