Como acertar na combinação quando o protagonista tem de ser aquele rótulo especial que descansa em sua adega
por Giuliano Agmont
Uma harmonização quase sempre começa pela comida. Os comensais primeiro definem o prato para depois escolher o vinho. É o que acontece sobretudo em bons restaurantes. Não por acaso, pensar nas opções do que se vai beber em um almoço ou um jantar se tornou um ritual corriqueiro, e até confortável, na vida de sommeliers e iniciados em enogastronomia em geral. Mas a harmonização é uma mão de duas vias, e começar pelo vinho, subvertendo essa ordem consagrada, pode ser um desafio tão excitante quanto revelador. Embora não seja uma ciência exata, já que evoca sensações e emoções, há alguns caminhos confiáveis a trilhar na busca de uma experiência inesquecível.
O VINHO COMO PROTAGONISTA
O primeiro passo é reconhecer quando a escolha do vinho merece acontecer antes. É claro que não existem regras para isso. Você pode, sem qualquer explicação, acordar com vontade de tomar um Cabernet, e ponto final. Mas, normalmente, a escolha do vinho ocorre antes quando se tem na adega uma garrafa especial, um verdadeiro protagonista. Pode ser um presente com significado afetivo, aquele rótulo escolhido a dedo para ser aberto em um dia festivo ou, ainda, vinhos específicos de um encontro de confrades cujo objetivo é justamente degustá-los com pratos que os enalteçam.
CATEGORIZAR AJUDA
Definido o vinho, é o momento de se divertir. Antes de tudo, e diante da infinidade de rótulos e receitas, esqueça qualquer coisa parecida com um manual. Regras costumam ser armadilhas nesse caso. Siga seus instintos. Mas faça isso pensando em categorias de vinhos. Entre os tintos, existem rótulos mais ou menos encorpados. Já os brancos podem variar em relação a sua leveza ou seu nível aromático. E há ainda os espumantes e rosés, cada um com suas peculiaridades. Vale a pena também pensar em categorias de alimentos. O vinho pode ser servido com diferentes tipos de carnes (vermelha, branca, curada), frutos do mar (crustáceos e moluscos), peixes (água doce ou salgada), queijos (moles e duros), vegetais (folhas, raízes, bolbo, sementes), fungos (cogumelos variados) e condi - mentos (ervas, legumes e especiarias).
ANALOGIA COM A MODA
A harmonização é um processo com correspondências em muitos outros campos da cultura, por isso suscita incontáveis analogias. É o caso da moda, talvez um dos mais emblemáticos. Uma roupa pode ser usada por alguém que pretenda simplesmente aquecer-se ou apresentar-se em público devidamente trajado. No entanto, a escolha do que se vai vestir pode embutir inúmeras camadas de considerações dependendo do nível de conhecimento dos envolvidos na decisão, como ensina a personagem da atriz Merryl Streep na versão para os cinemas do livro “O Diabo Veste Prada” (The Devil Wears Prada), publicado em 2003. A definição da roupa pode envolver desde os tecidos, as cores e as estampas de cada uma das peças do figurino, passando por cortes e conceitos celebrados pelos mais variados alfaiates ou estilistas, até o tipo de ocasião durante a qual o traje será exibido, levando em conta a época do ano, a previsão do tempo, as características do lugar e as pessoas com quem se vai estar. Do mesmo modo, a combinação de um vinho com um prato, ainda que o objetivo fundamental seja o de nutrir o corpo, tende a se revelar uma explosão de possibilidades. Portanto, leve em conta seu grau de conhecimento e suas vivências antes de imergir no desafio de escolher o prato que vai valorizar o seu vinho, sem se exigir demais. Solte-se sabendo aonde vai.
UVAS E REGIÕES
Encontrar o alimento certo para seu vinho pode ser uma missão complexa, até para entendidos, o que não significa que deva se tornar uma meta inalcançável, ou um objetivo paralisante. Pelo contrário, a experiência tem de ser prazerosa, motivadora, edificante. Experts têm condição de ir fundo na busca pela “harmonização perfeita”, como um maestro que recruta os músicos antes de reger uma orquestra sinfônica. Além da região do vinho e do tipo de uva ou blend, podem considerar a safra e até as características da vinícola e seu enólogo. Nesse caso, vão levar em conta cada uma das degustações que fizeram de determinado rótulo ao longo da vida. Para aqueles com menos “rodagem enológica”, a região das vinhas e o tipo de vinho já são um bom indicativo para a harmonização, bem como algumas referências teóricas.
TEORIA ANTES DA PRÁTICA
Um pouco de teoria ajuda na escolha de um prato que irá locupletar-se com aquele vinho especial da sua adega. Como se sabe, e há literatura farta sobre isso, a harmonização pode se dar por concordância ou contraposição. Quer dizer, as características do um e outro se combinam por similaridade ou antagonismo. Há, ainda, a harmonização por região, que une vinhos e pratos procedentes de um mesmo lugar, valorizando traços culturais e gastronômicos de países produtores, além das harmonizações de acordo com a época do ano, que podem levar em conta tanto os ingredientes sazonais como a temperatura em determinada época.
SIMILARIDADE E ANTOGONISMO
Os exemplos ajudam a refletir. Vinhos e alimentos podem ter características equivalentes que se equilibram. Ou seja, vinhos encorpados, com estrutura, como acontece com alguns Cabernet, pedem um prato com aspecto físico consistente, da mesma forma que vinhos complexos, e aromáticos, combinam com pratos concentrados (em que os chefs abusam das reduções), e vinhos ricos em doçura, como os fortificados, comportam-se muitíssimo bem com sobremesas. Características antagônicas também se equilibram. Vinhos com taninos pronunciados e muita acidez combinam com pratos gordurosos e oleosos. Assim como vinhos elegantes e macios, como muitos Pinot Noir, têm uma boa harmonia com pratos que puxam para o amargo. Já um vinho aromático e frutado, como diversos Riesling, podem se comportar bem ao serem servidos com pratos picantes, e ricos em especiarias.
CADA UM DOS SABORES
O segredo de uma harmonização está em realçar ou atenuar sabores conforme a circunstância. Na prática, um vinho de baixa acidez pode sumir diante de um alimento com molhos muito avinagrados, assim como um vinho de baixo teor alcoólico que puxa para o doce pode equilibrar o sabor acre de pratos picantes. Nessa mesma linha, um vinho com taninos menos pronunciados pode harmonizar com ingredientes amargos por conta de sua doçura. Em suma, uma harmonização deve considerar o doce, o salgado, o picante, o amargo, o gorduroso, o ácido, entre outros sabores reconhecidos pelo paladar humano, ao combinar um vinho pré-determinado com um prato a ser definido, buscando um equilíbrio da intensidade das características de ambos.
INCURSÕES MAIS OUSADAS
As linhas gerais de um raciocínio que pretende escolher um prato a partir de um vinho podem considerar algumas combinações clássicas. Para quem aprecia queijos, um tinto com bastante corpo pede a pungência de um gorgonzola ou um roquefort enquanto um branco ou até um rosé tendem a combinar com a delicadeza de um brie ou suíço. Nas refeições, um branco aromático harmoniza bem com um caranguejo ou uma carne branca; um tinto leve normalmente se equilibra com embutidos; e tintos com mais corpo pedem carnes vermelhas, como as de caça. Os complementos e condimentos também interferem na escolha do prato. Um espumante harmoniza com especiarias de forno, como cravo, canela e noz-moscada, e um branco leve aceita bem temperos como cebola e alho. As combinações são ilimitadas, tão sutis quanto complexas. Quanto mais se pesquisa e se experimenta, mais janelas se abrem, e esse é o grande barato de uma degustação, além de se estar ao lado de quem se gosta celebrando fundamentalmente a vida.