O que faz com que a bebida seja exclusiva e como os produtores a reinventam para se destacarem?
por Arnaldo Grizzo E Vanessa Sobral
A arte de Champagne está no blend. Essa devoção pelos cortes costuma ser comparada com Bordeaux, mas, quem ousa equiparar os chefs-de-cave bordaleses com os champenois não deve se esquecer de alguns detalhes. Enquanto em Bordeaux os enólogos mesclam diferentes cepas de um mesmo ano (geralmente de um terroir único também), em Champagne faz-se o assemblage entre diversos terroirs, vários anos e diferentes cepas.
"Sim, cada variedade tem uma tipicidade própria, mas ela também vai se expressar de maneira diferente segundo a orientação das vinhas e os solos: um Pinot Noir de Montagne de Reims será diferente de um de Aube, por exemplo. O Chardonnay de Mesnil sur Oger será diferente de um de Bethon (Côte de Sézanne). O terroir champenois é complexo e é justamente isso que gera blends interessantes para um enólogo", vibra a enóloga encarregada das comunicações do Comitê Champagne, em Épernay, Violaine de Caffarelli.
Alguém que quisesse comprar um vinhedo de um hectare hoje precisaria de, pelo menos, 14 anos para amortizar o valor só vendendo uvas
Porém, não é somente esse intrincado savoir- -faire (cada casa tem seu próprio estilo e a meta do chef-de-cave é reproduzir o mesmo sabor ano a ano) que faz com que Champagne tenha glamour. Desde o início, seus produtores sempre souberam vincular sua bebida com o luxo, antenados com as demandas de mercado - basta lembrar que, no início, os espumantes eram extremamente doces e hoje são secos. Os champenois são muito ligados às tradições, porém, com o tempo, aprenderam a criar produtos cada vez mais raros e exclusivos - foi assim que nasceram, por exemplo, as cuvées prestige, boa parte delas feitas em homenagem a figuras históricas. Então, cada produtor aprendeu a se diferenciar dos seus concorrentes, indo muito além de um estilo único, mas criando novidades e sabendo promovê-las.
Boa parte dos apreciadores de Champagne costuma se focar nos nomes consagrados, nas grandes casas - que estão sempre na vanguarda em termos de marketing e promoção -, mas os produtores da região mostram um leque de opções que vai muito além da combinação singular das três cepas "oficiais": Chardonnay, Pinot Noir e Pinot Meunier. Em uma visita à Champagne, podemos entender o porquê de essa bebida ser tão cultuada e valorizada, e também como ela pode se tornar cada vez mais exclusiva.
Ao norte de Épernay, em um declive da Montagne de Reims, esconde-se o vilarejo de Hautvillers, onde estão os restos (reformados) da abadia de Saint-Pierre, assim como os restos (mortais) do monge que tornou famoso o vinho da região. Na rua Dom Pérignon - em meio às casas com singelos sinais forjados em ferro que representam as profissões dos seus proprietários -, fica uma discreta loja dedicada ao Champagne. Na "Au 36...", as paredes estão forradas de garrafas com rótulos bem pouco conhecidos, como Gaston Chiquet, Alfred Gratien, Henri Giraud... como que para mostrar que Champagne vai além dos grandes nomes.
Champagne compreende pouco mais de 33,5 mil hectares divididos entre 15 mil viticultores. São 349 casas, 43 cooperativas e 4.651 produtores fazendo 386 milhões de garrafas por ano, o que equivale a 4,4 bilhões de euros. As casas representam 70% das vendas globais, sendo que as maiores e mais famosas têm a principal fatia disso.
Há um claro desequilíbrio de forças, mas, ainda assim, grandes e pequenos convivem. Hoje, bem mais pacificamente do que no começo do século XX, quando, em 1911, levantes de produtores - que questionavam, entre outras coisas, os preços pagos pelas uvas -, devastaram vinhedos e caves de alguns vilarejos. Desde então, houve acordos de entendimento e até pouco tempo atrás, o Comitê Champagne - associação entre viticultores e produtores - era quem fixava o valor do quilo das uvas.
Agora, sem o controle de um órgão de regulamentação direta - prática que foi proibida -, os preços são acertados diretamente entre os vinhateiros e as casas e, em média, ficam em 6 euros por quilo (dependendo da área, pode dobrar). Se estimarmos que pouco mais de um quilo de uva produz líquido suficiente para uma garrafa, o valor do vinho não tem como ser menor do que 6 euros - considerando apenas o custo da matéria-prima.
Fora isso, a região tem uma das terras mais caras do mundo. O valor médio do hectare é de 1,1 milhão de euros, mas pode ser muito mais em locais prestigiados, onde estão vinhedos Grand Cru. Considerando que cada hectare lá produza cerca de 13 mil quilos de uva, um produtor conseguiria 78 mil euros por safra. O que significa dizer que alguém que quisesse comprar um vinhedo de um hectare hoje precisaria de, pelo menos, 14 anos para amortizar o valor só vendendo uvas (caso tivesse 100% de lucro, o que não é o caso). Na verdade, estima-se que um pequeno produtor vá levar 70 anos para amortizar o valor da terra e as grandes casas, 10, já que elas podem diluir esse investimento.
Dessa forma, são raras as compras de terras, mas, em maio, enquanto mostrava um pouco da região de Vrigny - uma vila com cerca de 200 habitantes, onde seu avô, Roger Coulon, começou a produzir seus próprios vinhos - para um grupo de jornalistas, Eric Coulon recebeu uma ligação. "Foi um telefonema importante para nós. Propuseram-nos um vinhedo Grand Cru. Estamos em contato com o cartório e o banco, mas nada ainda foi feito, pois não é tão simples", afirmou o simpático vinhateiro, que possui 11 hectares em vinhedos Premier Cru.
Além de Chardonnay, Pinot Noir e Meunier, pode-se usar cepas antigas ainda autorizadas, como Arbanne, Petit Meslier, Pinot Blanc e Pinot Gris
Voltando à loja "Au 36..." e sua coleção de rótulos "desconhecidos", a proprietária, Dominque Valade, oferece uma degustação educativa, com vinhos varietais de Chardonnay, Pinot Noir e Pinot Meunier (veja box sobre o comportamento das três cepas). Um Blanc de Noir 100% de Meunier é raro, mesmo por lá. São poucos os produtores que se aventuram, como Michel Loriot, por exemplo, que está no Vallée de la Marne e 80% dos seus vinhedos são de Meunier.
Mais raros ainda são os que usam as outras castas permitidas pelas regras de Champagne, que a maioria das pessoas ignora. Além de Chardonnay e dos dois Pinot, todos os produtores podem usar cepas antigas ainda autorizadas, como Arbanne, Petit Meslier, Pinot Blanc e Pinot Gris. Elas são extremamente restritas, representando 0,3% da superfície da região, e o Comitê Champagne lista apenas 14 produtores que as utilizam pontualmente. Dentre eles há nomes completamente desconhecidos pelo grande público, como Cheurlin-Dangin, Agrapart, Aspasie, Pierre Gerbais etc. Entre os nomes mais famosos, Drappier faz uma cuvée especial, chamada Quatuor, com Arbanne, Pinot Blanc, Petit Meslier e Chardonnay. A Jacquesson também tem um pequeno vinhedo de Petit Meslier, mas só usou uma vez em uma cuvée especial.
Outra grande casa que faz planos de usar algumas dessas cepas é a Bollinger, que ganhou fama nos anos em que foi comandada pela intrépida Lilly Bollinger. "Ela preservou alguns vinhedos muito antigos pré-filoxera, com o qual fazemos o Vieilles Vignes Françaises", conta Christian Dennis, embaixador da Bollinger, sobre seus vinhedos mais célebres e que, em anos especiais, dão forma a uma raríssima cuvée. Além dessas vinhas históricas, a casa também mantém um minúsculo vinhedo "pedagógico" com as castas históricas de Champagne. "Há uma intrusa aí", diz Dennis, apontando as vinhas de Gamay, típicas de Beaujolais, que acredita-se terem sido usadas na região durante um período de crise de abastecimento. "Não temos a intenção de fazer algo com essas cepas antigas. Se quiséssemos, antes, seria preciso autorização do Comitê. Antes de fazer algo assim, um produtor precisa provar que, em algum momento de sua história, essas variedades foram utilizadas em suas cuvées", comenta o embaixador da Bollinger.
A Bollinger, por sinal, é uma das casas mais empreendedoras quando se trata de criar diferenciais. Além das vinhas pré-filoxera, eles são um dos poucos produtores a usar barricas de carvalho para fermentar seus vinhos. "Usamos somente barricas antigas da Borgonha. Há algumas de mais de 80 anos", diz Dennis ao mostrar uma sala especial onde faz-se pequenos reparos nelas, já que a média de idade é de 20 anos. "Desde o início usamos barricas, mesmo depois da década de 1950, quando surgiram os tanques de aço e as casas passaram a utilizá-los, por serem mais fáceis e econômicos. Na madeira, desenvolvemos aromas mais finos, além de ter uma micro-oxigenação, o que faz com que o vinho suporte envelhecimento precoce", explica. Bollinger, porém, não é o único grande nome a fermentar em carvalho, a Krug também usa desse artifício.
Há ainda quem invista em diferentes processos de vinificação. Eric Coulon, por exemplo, é um adepto do uso de leveduras naturais. "Para mim, a escolha da levedura natural se dá quando você quer mostrar o terroir. A primeira fermentação em tanques dura aproximadamente 30 a 40 dias e nem sempre é fácil dominá-la, dependendo das temperaturas exteriores. Ao contrário das leveduras selecionadas, que tendem a padronizar o sabor, as naturais (leveduras presentes na flor da uva) dão ao vinho a sua sutileza e permitem que o solo deixe sua marca", acredita o herdeiro de Roger Coulon. Mas ele não é o único a usar leveduras indígenas. Em Vertus, na Côte de Blancs, por exemplo, outro produtor pouco conhecido, Larmandier- Bernier, também utiliza.
"Há evidências de que as mudanças climáticas e o melhor domínio técnico nos vinhedos e na adega agora permitem chegar com mais frequência e mais regularmente ao nível de qualidade necessário para desenvolver um millésime. Há 20 anos, quase todos os anos foram millésimes em um produtor ou outro", Benoît Gouez
Outro detalhe ao qual nem todo mundo está atento é que, em Champagne, os vinhos rosés podem ser feitos por sangria ou maceração. A maioria dos produtores opta pelo primeiro método. "A mistura de vinhos brancos e tintos para desenvolver um rosé é uma regra ancestral em Champagne. No contexto da maturação fenólica - raramente completa em Champagne -, a elaboração de um vinho tinto permite uma melhor gestão de extração e evolução dos taninos e redução do amargor e adstringência. A assemblage com os vinhos brancos permite compor perfis de sabor e equilíbrio em boca mais abrangentes, em relação ao frescor do Chardonnay, por exemplo - o que você não pode obter em um rosé feito por maceração", garante Benoît Gouez, da Moët & Chandon. Christian Dennis, da Bollinger, vai além e vangloria-se de usar pouquíssimo vinho tinto para seus rosés: "Fazemos um tinto muito bem feito, assim, usamos uma porcentagem pequena em nossos rosés. Com isso, alcançamos uma sutileza que poucos conseguem, já que quanto mais vinho tinto se acrescenta, mais 'tânico', e com mais expressão do tinto ele vai ficar". Por outro lado, casas menores, como Leclerc Briant, Pascal Morel, Coutelas David, mas também outras mais famosas, como a Laurent Perrier, por exemplo, seguem defendendo os rosés de maceração, mas menos de 5% da produção de rosé hoje é feita dessa maneira.
Cada produtor tenta criar e recriar sua marca. Mesmo os mais célebres, cujos vinhos já são consagrados, não estão parados, sentados sobre os louros conquistados séculos atrás. Eles também buscam novas maneiras de criar algo mais exclusivo. É da natureza de Champagne tentar sempre se destacar.
Lá, uma das primeiras formas de inovar veio com os millésimes - um dos primeiros é o de 1811, a "primeira" safra do cometa. No entanto, o antigo conceito de que eles só eram feitos em anos especiais parece estar sendo substituído por outro bem mais simples: mostrar como as uvas se comportaram naquele período. "Ao produzir um millésime, desejo explorar as caraterísticas de uma safra", revela Eric Coulon, que faz vintages quase todos os anos. Todavia, os grandes produtores também têm feito millésimes recorrentemente. Frederic Rouzaud, diretor da Roederer, defende que é mais fácil declarar um vintage quando os vinhedos estão sob direta responsabilidade das casas, ou seja, são próprios e é possível controlar a qualidade mais de perto, mas Benoît Gouez vai além nessa explicação:
"Há evidências de que as mudanças climáticas e o melhor domínio técnico nos vinhedos e na adega agora permitem chegar com mais frequência e mais regularmente ao nível de qualidade (maturidade e estado de saúde) necessário para desenvolver um millésime. Há 20 anos, quase todos os anos foram millésimes em um produtor ou outro. Desde 1970, Moët & Chandon declarou seis ou sete vintages por década, mas ainda há anos que não fizemos por falta de maturidade suficiente (2001) ou pelo estado de saúde ruim (2005). Declarar um vintage depende da qualidade de seus suprimentos, mas também do estilo desejado. Moët & Chandon tem o privilégio de possuir o maior vinhedo de Champagne (metade das nossas vinhas em Grands Crus e um quarto em Premier Cru) e de ter acesso a uma ampla variedade de terroirs (mais de 230 crus) através de nossos contratos de fornecimento, e assim podemos ser altamente seletivos. A filosofia do Grand Vintage é ter certa liberdade. Fora todas as restrições, deve expressar a safra o mais fielmente possível e elaborar vintages carismáticos, originais e únicos".
As casas têm substituído a remuage tradicional por giropalets, porém, garrafas de grandes formatos ainda precisam ser giradas manualmente
Champagne aliás, é uma das regiões que mais investe em pesquisas de vitivinicultura, tudo bancado pelo Comitê local. Questionados sobre as pesquisas relacionadas aos efeitos do aquecimento global, eles não quiseram dar detalhes. "Nada foi publicado sobre os ensaios do nosso laboratório de pesquisas em termos de preparação para os efeitos do aquecimento global. Ainda é muito cedo para dar informação ou falar sobre isso. Considerando que o aquecimento global não é realmente significante para as vinhas de Champagne até agora, isso será um ensaio de longo prazo", aponta uma fonte do comitê.
No entanto, em uma região tida como limite em termos de latitude norte para o amadurecimento das uvas (perto dos 50o), praticamente todos os produtores afirmam que não têm mais problemas de maturação - algo bastante comum décadas atrás. Além disso, em uma apresentação e também andando pela região, ADEGA viu alguns vinhedos de condução mais alta do que os tradicionalmente baixos de Champagne. "São para gerar mais sombra", disse o Relações Públicas do Comitê, Philippe Wibrotte, afirmando também que alguns ajustes têm sido feitos para equiparar os vinhedos champenois a outros mundo afora e assim facilitar a vida dos produtores, que não mais precisariam adquirir máquinas específicas.
E assim Champagne se reinventa, sempre antenado, sempre atento ao mundo, desde as suas demandas de mercado até as do clima, sempre na vanguarda.
Para quem gosta de comprar garrafas grandes, os champenois dão uma dica importante: o tamanho ideal de Champagne é Magnum. "A maioria das casas, para fazer os tamanhos maiores, acrescenta o líquido já pronto de garrafas menores", afirma Christian Dennis, da Bollinger, que completa: "As Magnum, devido ao formato, também não cabem nos giropalets, portanto, é uma garantia de que são feitas 100% no método tradicional de Champagne, com remuage à mão". Muitas casas (como Moët, Bollinger e Deutz, por exemplo), contudo, trabalham com o Jéroboam (Double Magnum, ou seja, 3 litros) como sendo o maior formato em que a bebida seguramente passa por todo o procedimento champenois na própria garrafa.