Escola do vinho

Sem estresse? Pesquisas mostram até que ponto o déficit hídrico é bom para a vinha e para o vinho

Contrariando o senso comum, o alto estresse hídrico não é o melhor cenário na produção vitivinícola

por Redação

O estresse hídrico faz "bem" para a parreira?

Durante muito tempo, uma das questões cruciais da vitivinicultura chilena foi a gestão hídrica das vinhas – “um grande erro que tivemos no Chile em geral é que se irrigava muito, ou muito pouco”. 

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Vale destacar o “um pouco desconfortável” no ponto de vista de De Martino, o que, na opinião dele, é diferente de um déficit severo. Ou seja, diferentemente da crença comum, um estresse demasiado também não é bom para a videira.

Opinião semelhante tem o pesquisador e Master of Wine neozelandês, Steve Smith. “É uma linha tênue. Muito esforço significa muito açúcar (ou nenhum açúcar, porque todas as folhas caem!), nenhum ácido, taninos duros, sabores flácidos; por outro lado muito pouca luta gera muito pouco açúcar, alto teor de ácidos, vinhos muito ligeiros”, apontou em uma entrevista à revista Decanter. 

“Embora algum estresse hídrico muitas vezes possa ajudar a melhorar a qualidade da uva para vinho, existe algo como não fornecer água suficiente para a videira”, afirma Markus Keller, investigador principal de uma pesquisa de regulagem de irrigação de déficit hídrico conduzida por cientistas da Washington State University (WSU) em 2017.

O estudo mostra que o déficit de irrigação, embora geralmente benéfico, pode ser levado a extremos, e ir muito baixo. As videiras que receberam os índices mais baixos no estudo foram economicamente insustentáveis devido à redução dos rendimentos e ao declínio da videira em comparação com outros tratamentos no mesmo ensaio. 

Pesquisas mostram que a privação total de água não é benéfica para a planta

Outra pesquisa de 2017, mas desta vez com uvas Pinot Noir na Suíça, revela que o déficit hídrico moderado favorece o acúmulo de açúcares. “A maior concentração de açúcares nas bagas observada em vinhas não irrigadas, que sofreram estresse hídrico moderado durante o amadurecimento, indica que a variedade Pinot Noir reage positivamente a um déficit hídrico pós-pintor (quando a uva começa a se tornar tinta) moderado a forte, aumentando o teor de açúcar nas bagas, em comparação com vinhas bem regadas”, aponta a pesquisa.

Ela observa que o momento da irrigação também pode ser determinante. 

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“Os vinhos produzidos a partir de vinhas com estresse hídrico tinham uma cor mais profunda e eram mais ricos em antocianinas e compostos fenólicos em comparação com os vinhos de vinhas bem regadas sem estresse hídrico. Os vinhos produzidos a partir de vinhas não irrigadas com déficit hídrico apresentam mais estrutura e taninos de maior qualidade. Eles também foram considerados mais encorpados e com taninos mais suaves do que aqueles feitos de videiras irrigadas”, resumiu o estudo. 

O dilema de Cachinhos Dourados

A questão do quanto e quando irrigar parece ser crucial para as vinhas e o resultado dos vinhos, obviamente.

Uma pesquisa que reuniu especialistas chilenos e alemães, também de 2017, estudou os efeitos do manejo de água nas vinhas de Carménère, em Peumo. “Cinco tratamentos de água foram aplicados: 0%, 20%, 40%, 75% e 100% da evapotranspiração (perda de água) estimada do vinhedo (ETc) em um vinhedo de Carménère durante três safras consecutivas (2004 a 2007). A aplicação 100% ETc não teve efeito substancial nos parâmetros de qualidade medidos, embora a produção de uva no tratamento sem irrigação (0% ETc) tenha sido significativamente reduzida. A aplicação de água a 20% a 40% ETc produziu alto rendimento (13 a 16 toneladas/hectare), o dobro da produção média histórica, e vinhos de alta qualidade”, aponta o estudo, deixado claro que um pequeno ajuste na irrigação pode gerar um rendimento ótimo com uma qualidade excepcional.

Água do degelo dos Andes utilizada para irrigar os vinhedos

Os vinhos resultantes foram avaliados por um painel de enólogos da Concha y Toro. “Os resultados da degustação indicam que a qualidade do vinho, com exceção da temporada 2004-2005, não foi claramente afetada nem pela produção da uva nem pela taxa de irrigação. As classificações de qualidade do vinho para os tratamentos 20% e 40%  foram apontadas como semelhantes ao tratamento sem irrigação, mas dobrando o rendimento.

Mesmo o vinho com o tratamento 100%  obteve pontuações elevadas, mas este tratamento apresenta uma utilização ineficaz da água. Dadas as condições do Vale do Peumo, é possível aumentar os níveis de produção da uva, como nas duas últimas safras, sem reduzir a qualidade do vinho”, conclui a pesquisa liderada por Jorge Zara, da Universidade de Concepción. 

Em entrevista ao The California Wine Clube, o enólogo Tom Myers, questionado sobre o quanto de estresse hídrico uma vinha deveria sofrer, disse: “Certamente a fisiologia da videira, da qual o estresse é um aspecto, é fundamental para a química da uva na colheita. Meses e anos após a colheita, a cor, o ácido, o aroma, o sabor e a sensação na boca do vinho resultante ainda mostrarão os efeitos da química inicial da uva. E quanto estresse é bom ou ruim? Existe um mito que afirma que as uvas precisam de muito estresse para produzir um melhor vinho. Mas estudos indicam que, embora algum estresse (e o momento em que ele ocorre) seja bom, em algum ponto ele se torna prejudicial”. 

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“Vinhas com muita água e nutrientes crescem muito o dossel, que sombreia as frutas, dão uvas grandes, de pouca cor com sabores diluídos. Vinhas com pouca água e nutrição não têm área foliar suficiente para amadurecer os frutos e podem deixar os cachos expostos às queimaduras solares. Ambos os extremos resultam em vinhos de baixa qualidade. O ideal, então, é ter as vinhas equilibradas e em condição ‘Cachinhos Dourados’ (nem muito, nem pouco, na medida certa).

Isso significa folhagem suficiente para fornecer fotossíntese e sombra intermitente, e estresse suficiente para produzir pequenos frutos recebendo luz solar suficiente para desencadear o processo de amadurecimento”, conclui.  

Planta por planta

Quem dá mais detalhes desse manejo é o enólogo norte-americano Jeff Newton em entrevista para o site Wine and Vines Analytics: “Para nossos vinhedos destinados aos melhores vinhos, o manejo da irrigação é especialmente crítico. Nossa experiência mostra que menos água é melhor para a qualidade do vinho. Portanto, fazemos tudo o que podemos para reduzir o uso. Como temos estações meteorológicas em muitos de nossos vinhedos, podemos calcular a evapotranspiração (ET) e, portanto, avaliar com precisão qual nível de déficit em relação à ET estamos atingindo. Embora um nível apropriado de irrigação para muitos vinhedos possa ser de 50-60% ET, normalmente almejamos um déficit de 25% para vinhedos que vão para os melhores vinhos. Conseguimos levar certos vinhedos para um déficit de cerca de 15%, mas extremo cuidado deve ser tomado nesses níveis, pois as ondas de calor podem levar as vinhas além do limite, prejudicando tanto a safra quanto as vinhas”.

Cada casta tem a sua necessidade de irrigação

Ele explica como faz a avaliação do uso de água em seus vinhedos na região de Santa Barbara: “Preferimos o monitoramento baseado em plantas – aquelas técnicas que nos dizem o nível de estresse hídrico que a videira está enfrentando. Usamos as leituras de umidade do solo antes do florescimento para nos ajudar a tomar decisões de irrigação no início da safra. Um programa de irrigação ideal para toda a temporada começa com um perfil completo do solo. Se um metro de solo não estiver com a capacidade no final da estação chuvosa, adicionamos água de irrigação suficiente para atingir o nível. Nosso objetivo é florescer sem nenhuma irrigação suplementar.

Na floração, adicionamos entre 2 e 3 litros de água por videira para garantir que o conjunto não seja afetado por condições de seca. Após isso, tentamos chegar ao pintor sem adicionar água. Finalmente, quando chegamos ao verão, irrigamos todas as semanas até cerca de uma semana antes da colheita”. 

“Enquanto a maioria de nossas uvas tintas precisa de algum estresse hídrico, a Pinot Noir é o oposto, nunca devemos parar [a irrigação]”, afirmou Matias Ríos, enólogo da Cono Sur em entrevista ao site The Drinks Businesse no ano passado. Segundo ele, os solos úmidos evitam a perda de ácido nas bagas, assim como o desenvolvimento de taninos mais duros. Ou seja, é preciso estudar cada realidade para ajustar os parâmetros de estresse hídrico. 

Falta de água e estresse regulado

Uma pesquisa de Yasmin Michell Chalmers, da Universidade de Adelaide, já apontava em 2007, que o risco crescente de estresse por déficit hídrico devido ao aquecimento global poderia sujeitar os produtores de vinho de regiões tradicionais a novos desafios em relação a possíveis estratégias de irrigação; e sugere que estratégias de irrigação específicas podem melhorar o uso da água nas vinhas.

Ela aponta que o déficit de irrigação sustentado (SDI, em inglês) – aplicação de um volume menor de água durante toda a temporada – pode ter resultados importantes para determinadas variedades e regiões. 

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“Um SDI de aproximadamente 50% menos água pode ser aplicado ao longo de uma ou duas safras com melhorias na eficiência do uso da água e composição da baga em comparação com videiras totalmente irrigadas. Além disso, para Cabernet Sauvignon exposto a 70% e 52% SDI, tendeu a haver melhorias na composição geral do vinho e na classificação sensorial do que o grupo de controle”, apontou o estudo. 

Outro ponto a ser levado em consideração é a relevância dos porta-enxertos na adaptação das variedades aos climas mais secos. Um estudo recente, de 2020, liderado pela italiana Alessandra Zombardo, mostra que, “quando as videiras sofrem estresses severos, podem sofrer danos metabólicos que afetam a produção e a qualidade da uva”. Assim, a “enxertia é uma estratégia acessível para mitigar essas consequências negativas, uma vez que o porta-enxerto pode aumentar a tolerância à seca.

As pesquisas mostram que a ideia de que, quanto mais estresse melhor, não é verdadeira

A resposta ao estresse hídrico pode ser modulada por porta-enxertos, que atuam principalmente na regulação do metabolismo secundário, principalmente em uvas”. Ou seja, quando se fala em estresse hídrico, até o enxerto deve ser considerado para que a vinha possa ter uma resposta eficaz. 

“Na viticultura, os déficits hídricos podem variar em intensidade, tempo e duração. Todos esses fatores afetarão o impacto exato que o déficit tem na produção das frutas. No entanto, é claro na literatura que um severo déficit de água pré-pintor irá reduzir o tamanho da baga na safra, e os cachos por videira nas safras subsequentes. Primeiro, o conteúdo de água do solo antes da brotação é crucial para o desenvolvimento saudável de botões. Em segundo lugar, as práticas culturais da brotação à floração podem ter impactos duradouros na produtividade da videira a longo prazo e na sustentabilidade da vinha”, aponta uma análise de Alexandre D. Levin, Alain Deloire e Gregory A,. Gambetta, na revista Wine Business. 

Ou seja, por tudo isso, a ideia de que, quanto mais estresse melhor, não é verdadeira.

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