Conheça a história e a importância da ciência da ampelografia para a vitivinicultura em todo o mundo
por Arnaldo Grizzo
A descoberta acidental da Carménère no Chile, feita pelo ampelógrafo Jean-Michel Boursiquot em 1994, revolucionou a viticultura chilena. Inicialmente confundida com Merlot, a Carménère ressurgiu após ser praticamente extinta devido à crise da filoxera no século XIX. Este acontecimento não só resgatou uma variedade quase perdida, mas também destacou a importância da identificação precisa das videiras, contribuindo significativamente para o mercado de vinhos chileno.
A ampelografia, ciência dedicada à identificação de videiras, evoluiu consideravelmente desde suas raízes no século XVII. Trabalhos de pioneiros como Pierre Galet, que introduziu técnicas precisas de análise botânica, transformaram a ampelografia em um campo científico rigoroso. Embora modernas técnicas de DNA tenham ganhado destaque, a metodologia tradicional de Galet, baseada na observação detalhada das folhas e outras partes da planta, continua sendo uma ferramenta crucial para viticultores em todo o mundo.
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Desde 1985, Boursiquot é responsável pelo departamento científico do Domaine Vassal, o maior conservatório mundial de variedades de uvas do mundo.
A primeira coleção foi estabelecida em 1876 com espécies de uvas americanas importadas para avaliar sua resistência à filoxera. O professor Louis Ravaz impulsionou seu crescimento e, no começo dos anos 1950, a coleção foi transferida para o Domaine Vassal, situado entre as cidades de Agde e Sète, cerca de 60 quilômetros a sudoeste de Montpellier, a apenas 30 metros da costa.
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Atualmente, o local abriga 2.600 variedades distintas de uvas vitis vinifera, além de várias outras espécies de uvas não viníferas. Com a plantação de diversos clones de cada variedade, o Domaine conta com cerca de 7.600 indivíduos.
Hoje, saber reconhecer exatamente a espécie de uva em um vinhedo pode parecer algo banal. Com tantas tecnologias, teoricamente é simples cruzar dados, fazer análises e apontar uma variedade.
Mas quão relevante é isso? A descoberta de Boursiquot no Chile 30 anos atrás revelou-se um enorme feito, pois, além de resgatar uma vinha que era tida como praticamente extinta no planeta após a crise da filoxera em meados do século XIX, criou uma nova vertente para a vitivinicultura chilena, que usou a casta como um diferencial no mercado.
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No entanto, para chegar ao patamar atual, a ampelografia passou por diversas fases. Diz-se que a ampelografia contemporânea teve suas raízes firmemente estabelecidas em Montpellier, na década de 1940, com o trabalho seminal de Pierre Galet, um respeitado professor da École Nationale Supérieure Agronomique da cidade.
Em 1944, ele criou a primeira chave dicotômica para porta-enxertos cultivados na França. Antes disso, a ampelografia era predominantemente uma arte, mas Galet revolucionou o campo ao introduzir técnicas precisas de identificação de variedades de uvas.
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O método de Galet, apresentado em sua obra “Ampélographie Pratique” de 1952, baseava-se em uma análise minuciosa e sistemática da estrutura, forma e cor de várias partes da planta, como flores, gomos, pecíolos, folhas e racemos, além das características dos bagos. Esta obra, que listava 9.600 variedades de vinhas, tornou-se uma referência.
Além disso, Galet desenvolveu um sistema de medição da videira, conhecido como método ampelométrico, detalhado em sua obra “Cépages et Vignobles de France” publicada de 1956 a 1964.
Esse método, que se tornou o padrão-ouro em ampelografia, utilizava proporções entre os comprimentos das diferentes nervuras das folhas adultas e os ângulos entre elas para classificar as variedades de uvas.
Entre suas contribuições notáveis, ele identificou mais de 100 variedades pertencentes à família Pinot. Sua metodologia permitiu validar e corrigir sinônimos frequentemente usados, bem como identificar diferentes variedades que podiam compartilhar o mesmo nome, dependendo da região, tal como a Melon de Bourgogne (variedade da DOC Muscadet) que era confundida com alguns Pinots na Califórnia, por exemplo.
Falecido em 30 de dezembro de 2019, Galet é considerado o grande nome da ampelografia, tendo deixado uma marca indelével na compreensão e na apreciação da videira. Contudo, ele não foi o primeiro a se dedicar ao estudo de identificação das vinhas.
A história da ampelografia remonta a 1661, quando o cientista Philip Jakob Sachs, da atual Polônia, escreveu o livro “Ampelographia”, marcando o primeiro uso do termo, que deriva do grego ampelos para videira graphe para descrição.
Embora não tenha sido o pioneiro na descrição das diferentes variedades de videiras – uma prática já abordada por escritores antigos no período clássico – seu trabalho ajudou a formalizar o campo.
O grande impulso para a ampelografia como ciência surgiu na segunda metade do século XIX, motivado não tanto pelas qualidades sensoriais, mas sim por necessidades agrícolas urgentes. Doenças devastadoras como o oídio, a filoxera e a podridão negra, causaram estragos na Europa. Foi fundamental identificar variedades de videiras resistentes a essas doenças para enxertá-las em porta-enxertos e desenvolver castas mais robustas que otimizassem as colheitas.
À medida que a ampelografia se desenvolveu, houve uma necessidade crescente de padronizar a classificação e metodologia em regiões vitivinícolas diversas e uma comissão internacional se reuniu no século 19 para padronizar os nomes das variedades de videiras, resultando no “Fórum Internacional para a Descrição de Castas de Uva”, um marco na padronização internacional.
O catálogo “Ampélographie: Traité général de viticulture”, publicado entre 1901 e 1910, continua sendo uma referência para colecionadores, com suas ilustrações botânicas detalhadas.
É na esteira disso que surge o trabalho revolucionário de Galet. Para ele, as diversas partes da videira em crescimento – como a ponta, a folha jovem, a folha, os lóbulos, as axilas das folhas, os rebentos, os colmos, as flores, os frutos e as sementes – apresentam atributos distintos que podem indicar a variedade da planta.
Em essência, cada parte contribui para a determinação de sua verdadeira identidade quando observada por um olhar treinado.
Contrariamente ao que se poderia esperar, para Galet, o foco não estava nas uvas em si. Embora a estrutura dos cachos e o formato dos frutos sejam características únicas de diferentes castas, Galet privilegiava outras partes da planta em suas investigações. Em sua obra “Cépages et Vignobles de France”, a também ampelógrafa e tradutora os livros de Galet, Lucie T Morton observa: “Em sua premiada obra de quatro volumes, não há uma única imagem de um cacho de uva. Em vez de se concentrar nos frutos, ele concentra suas observações no indumento (pilosidade) e na estrutura das folhas.”
Para Galet, a folha adulta era especialmente reveladora. Ele a definia como “aquela que ocorre além do sexto nó na base de um rebento proveniente da madeira do ano anterior e que alcançou pleno desenvolvimento”. Com base nesse critério, ele iniciava suas investigações.
Ao estudar e categorizar as vinhas, Galet desenvolveu uma abordagem meticulosa, decompondo as variedades com base nas nervuras presentes nas folhas. A maioria das variedades de videira possui folhas palmadas, caracterizadas por nervuras que irradiam de um único ponto, geralmente com cinco veias no total.
Para analisar essas veias, Galet criou ferramentas específicas, como a Régua Galet e o Transferidor Galet. Esses instrumentos de medição utilizam proporções e ângulos para avaliar de forma mais precisa as características únicas das vinhas. A Régua Galet, por exemplo, calcula as proporções de comprimentos entre as veias, enquanto o Transferidor Galet avalia os ângulos entre elas. As métricas resultantes são então comparadas com pesquisas existentes para identificar a variedade com precisão.
Nos últimos anos, todavia, a tecnologia de marcadores de DNA, também conhecida como impressão digital de DNA, tem se tornado a principal ferramenta de identificação de videiras, substituindo em grande parte a ampelografia tradicional. Esse processo envolve a criação de um perfil de DNA para a videira em questão, utilizando amostras retiradas de folhas jovens ou pontas de crescimento, e em seguida, comparando-as com um banco de dados de “vinhas-voucher”. O departamento Foundation Plant Services da UC Davis, por exemplo, possui milhares de perfis em seu banco de dados.
Carole Meredith da University of California em Davis foi pioneira no uso dos perfis genéticos para a identificação de castas de videira. Entre as descobertas mais famosas que obteve com o seu método está a determinação que as vinhas Zinfandel, Primitivo e Crljenak Kaštelanski pertencem a uma única casta, e a identificação das castas ancestrais da Sangiovese como sendo Ciliegiolo e Calabrese Montenuovo.
Apesar das vantagens dos testes de DNA, a ampelografia tradicional ainda tem seu valor, pois enquanto um ampelógrafo especializado pode percorrer uma vinha mista e identificar as diferentes variedades com rapidez, proporcionando respostas imediatas, os resultados dos testes de DNA podem levar até três dias ou mais para serem obtidos.
Num mundo onde os climas são cada vez mais imprevisíveis e as pragas estão sempre à espreita, encontrar a videira perfeita para as necessidades específicas de cada vinhedo torna-se vital. Nesse sentido, a ampelografia desempenha um papel crucial, permitindo a identificação e eliminação de videiras mal rotuladas ou inadequadas ao clima local, bem como aquelas que produzem uvas com qualidades sensoriais indesejadas.
Apesar dos avanços na genética da videira, é importante não subestimar o valor do sistema desenvolvido por Galet. Enquanto a análise de DNA pode ser cara, demorada e inacessível para muitos viticultores, as ferramentas simples como uma régua e um transferidor, aliadas ao catálogo de Galet, oferecem uma abordagem prática e eficaz para a identificação das variedades. Essas ferramentas tradicionais continuam a ser fundamentais para os viticultores.