Descubra a conexão da civilização com a bebida no mais antigo texto literário já escrito
por Por Arnaldo Grizzo
"Gilgamesh, aonde vais com tanta pressa? Jamais encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em seu próprio poder. Quanto a ti, Gilgamesh, enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois este também é o destino do homem”.
É com este discurso de certo modo hedonista que Siduri, deusa do vinho, tenta dissuadir o rei e herói Gilgamesh de sua busca pela vida eterna. E são estes alguns dos primeiros textos literários conhecidos pela humanidade que falam sobre o vinho.
Até os arqueólogos começarem a escavar regiões do Oriente Médio, especialmente na Mesopotâmia em meados do século XIX, as primeiras referências à bebida resultante da fermentação da uva eram dos escritos homéricos e bíblicos. No entanto, quando exploradores britânicos debruçaram-se sobre a extinta cidade assíria de Nínive, fizeram uma importante descoberta ao encontrar os restos de uma das maiores bibliotecas do mundo antigo.
A Biblioteca de Nínive, construída por volta de 650 a.C. por ordem do rei Assurbanipal – um dos mais relevantes monarcas do império da Assíria (cujas terras hoje representam basicamente o atual Iraque) –, é considerada a primeira da história e estima-se que nela foram encontradas mais de 20 mil placas em escrita cuneiforme sobre os mais variados assuntos com relatos que remontam a períodos ainda mais antigos da civilização mesopotâmia. Acredita-se ainda que a criação da famosa Biblioteca de Alexandria possa ter sido inspirada na de Nínive.
Graças às tábuas de barro achadas na Biblioteca de Assurbanipal, hoje conhece-se com muito mais propriedade a história dos povos que viveram naquela região entre os rios Tigre e Eufrates. Crê-se que o rei assírio, tido como um grande estudioso, mandou os escribas de seu reino copiarem todos os textos conhecidos do mundo na época – em duas línguas, acadiana e suméria. Somente anos depois da descoberta, quando as tábuas começaram a ser traduzidas, os pesquisadores passaram a lhe dar a real importância ao descobrir um texto que continha o relato do Dilúvio. A tábua que narra esse “fato bíblico” fazia parte da Epopeia de Gilgamesh.
Assim, a história épica do rei sumério Gilgamesh chegou aos nossos dias. Ela é contada em 12 tábuas encontradas na Biblioteca de Nínive. No entanto, a maioria dessas inscrições está incompleta, separada ou perdida, muito devido ao descuido dos primeiros arqueólogos, o que dificulta imensamente o trabalho de tradução e compreensão dos textos. Até hoje, cientistas de todo o planeta tentam encontrar e reunir os fragmentos dessas tábuas que acabaram por se espalhar por museus mundo afora.
No entanto, os trechos revelam a incrível história de um rei da Suméria (região do sul do Iraque e Kuwait, perto do Golfo Pérsico), que teria mesmo existido e fixado seu trono na cidade de Uruk, uma das maiores cidades da Idade do Bronze, por volta de 2.700 a.C. Ele teria sido o quinto rei da cidade pós-Dilúvio. Segundo a lenda que sobreviveu nas tábuas ninivitas, Gilgamesh é um semideus, filho do rei Lugulbanda (futuramente deificado) e da deusa Ninsun. Por isso, ele possuía força sobre-humana e uma beleza escultural, incomparável a de outros homens.
A história de Gilgamesh, contudo, ao contrário dos mitos homéricos, traz o relato de um herói que, apesar de sua busca incansável pela imortalidade, por querer viver entre os deuses, acaba tendo que se conformar com os desígnios da vida humana. Ele é, então, o retrato do primeiro herói “humanizado”.
O vinho permeia algumas passagens importantes da epopeia de Gilgamesh e sua menção está repleta de simbologias. Logo no início da trama, conta-se a história de Enkidu. Depois dos apelos da população de Uruk, que estava cansada da tirania do rei, ele foi criado pelos deuses a partir do barro (lembra alguma história bíblica?) para ser um rival de Gilgamesh, um equivalente em força, que pudesse contrapô-lo.
Enkidu é o homem natural, o selvagem, criado em meio aos animais, alheio aos costumes da sociedade. Um dia, porém, os homens do campo, cansados de verem suas caças sendo libertadas pelo selvagem, levaram uma prostituta para se deitar com ele e ensinar-lhe as “artes femininas”. Ela ainda o encaminhou até Uruk, onde disse: “Come o pão, é o suporte da vida; bebe o vinho, é o costume da terra”. Ele então comeu até ficar saciado e bebeu sete cálices, ficando alegre, com o coração exaltado e a face brilhante.
Assim, “Enkidu se tornou homem”, diz a narrativa. Vinho e pão simbolizam a agricultura, o que separa os homens das bestas. Para alguns estudiosos, o fato de uma “rameira” ter ensinado os costumes dos homens, entre eles beber vinho, revelaria ainda a antiga relação que a bebida tem com a sexualidade humana.
Depois de um enfrentamento, Enkidu e Gilgamesh tornam-se amigos inseparáveis, como irmãos, e passam a empreender diversas aventuras e feitos heroicos em conjunto. No entanto, Enkidu morre e sua morte causa uma enorme comoção no rei de Uruk, que fica transtornado por não compreender como sua grandiosidade não era capaz de vencer a morte.
Sendo assim, Gilgamesh parte em uma busca para encontrar o segredo da vida eterna, que seria conhecido de Utnapishtim, “o Longínquo”, o único homem a sobreviver ao Dilúvio e que foi levado pelos deuses para habitar na “foz dos rios”, em um local conhecido como Dilmun (onde o sol nasce). Em sua jornada, ele segue por mundos sombrios, enfrenta monstros jamais vistos e, cada ser que encontra pelo caminho, aconselha-o a desistir e aceitar a sorte humana.
Para alcançar o Dilmun, porém, o rei precisa atravessar a montanha Mashu por um túnel com 12 léguas de escuridão e, em seguida, o “mar da morte” – até então nunca antes suplantado por qualquer mortal, a não ser Utnapishtim. Assim, é em uma casa à beira mar que Gilgamesh encontra Siduri, a deusa do vinho.
Comer pão e beber vinho são símbolos de humanidade
Siduri também é conhecida com Sabit que, antes de se tornar um nome próprio, significava “taberneira”. É uma figura enigmática que, de certo modo, assemelha-se ao mito grego de Circe – caracterizada na Odisseia de Homero como a feiticeira capaz de transformar homens em animais e soberana de uma ilha onde Ulisses e seus companheiros viveram tão repletos de libações que chegaram a esquecer sua pátria. Acredita-se que sua casa às margens do “Oceano” possa representar o local de origem das vinhas no mundo, com alguns estudiosos apontando como o Mediterrâneo, outros, porém, como algum lugar no Irã.
Com medo da figura que se aproximava, Siduri fechou a porta impedindo a entrada do rei de Uruk, que insistiu e foi acolhido. Ao ouvir o porquê de Gilgamesh estar ali, a deusa tenta demovê-lo com o discurso hedonista mote da abertura deste texto. Para alguns, esse seria o primeiro relato da filosofia do carpe diem.
Diante da insistência do rei, Siduri acaba por ajudá-lo a encontrar um modo de chegar até Utnapishtim, indicando-lhe o barqueiro Urshanabi, único capaz de transpor as águas com segurança. Contudo, o encontro com o sobrevivente do Dilúvio acaba por ser infrutífero para Gilgamesh. Com a fatídica frase: “Não existe permanência”, Utnapishtim explica que o destino dos homens está selado, não há escapatória. Apesar disso, apiedado do herói, o sábio indica-lhe uma planta que cresce sob as águas do mar e tem o poder de restaurar a juventude perdida. O rei a encontra, mas, em um instante de descuido, vê uma serpente abocanhá-la, imediatamente trocando de pele.
Finalmente conformado com sua sorte, Gilgamesh retorna a Uruk, onde morre cercado de homenagens (com vinho). Se sua busca não lhe trouxe a imortalidade, sua lenda, todavia, eternizou seu nome. E, se como ele, sabemos que não existe permanência, que ao menos ouçamos a sabedoria de Siduri, “pois este também é o destino do homem”.