Os segredos do Roquette & Cazes, o tão falado vinho do Douro com toque bordalês

por Redação

Conversa com Jean-Charles Cazes e Tomás Roquette sobre o projeto Roquette & Cazes e muito mais

Tomás Roquette e Jean-Charles Cazes têm muitas coisas em comum. São da mesma faixa etária (Tomás completou 49 anos em março; Jean-Michel faz 45 em junho) e representam a quarta geração de suas respectivas famílias no mundo do vinho. Os Roquette são donos da Quinta do Crasto, uma das mais belas propriedades do Douro; os Cazes, do afamado Château Lynch-Bages, em Bordeaux. Juntos são sócios no projeto Roquette & Cazes, criado no início dos anos 2000 por iniciativa de Jorge Roquette e Jean-Michel Cazes, respectivamente pais de Tomás e de Jean-Charles.

Curiosamente, embora Tomás seja português e Jean-Charles, francês, o Brasil está presente na vida de ambos. Tomás morou vários anos no Rio, com sua família, após a chamada Revolução dos Cravos, em Portugal, que levou seu pai à prisão por alguns meses. E seu bisavô do lado materno fez fortuna na ex-colônia portuguesa. Já a mãe de Jean-Charles é portuguesa de Moçambique e, até hoje, os Cazes têm casa em Cascais e parentes em Portugal. Não por acaso, Jean-Charles viveu por dois anos em São Paulo, trabalhando numa multinacional francesa. O ramo nada tinha a ver com o glamoroso mundo do vinho no qual atua hoje: era um fabricante de autopeças. A temporada no Brasil ajudou-o a aprimorar o português, que é fluente, com leve (e charmoso) sotaque francês. Já Tomás, que vem ao Brasil com frequência, é até capaz de emular um sotaque carioca, lembrando os tempos em que vivia na cidade e passava fins de semana em Búzios.

Quinta do Crasto, onde os vinhos Roquette & Cazes são produzidos

Claro que tudo isso ajudou quando começaram a ter contatos mais frequentes por conta da parceria de suas famílias no Douro. Mas são raras as vezes em que apresentam juntos o projeto e os vinhos que produzem, apenas dois até hoje: Roquette & Cazes, com produção média de 60 mil garrafas; e Xisto, que não chega a 10% desse número. Uma dessas raras ocasiões foi no final do ano passado, em São Paulo, quando comandaram lado a lado uma Master Class de diferentes safras do R&C e da safra atualmente disponível do Xisto, 2013, que só é produzido em anos excepcionais. Foi também nessa vinda ao Brasil que conversaram, também juntos, com AEGA, na sede da Qualimpor, que importa tanto os vinhos do Crasto como os do projeto Roquette & Cazes.

Nessa conversa, Tomás e Jean-Charles comentam várias particularidades da joint-venture – da forma como é administrada à aprovação dos cortes. Mas falam também de questões atuais, como o impacto do aquecimento global no Douro e em Bordeaux e a tendência à prática de uma agricultura mais sustentável, que ambos obviamente apoiam, mas não necessariamente associam à tão na moda biodinâmica. 

Além da administração do projeto, a dupla comenta questões atuais como aquecimento global e agricultura sustentável 

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Como nasceu o projeto Roquette e Cazes?

Jean-Charles Cazes - O projeto começou nos anos 1990, com o encontro de meu pai, Jean-Michel, com Jorge, pai do Tomás. No início dos anos 2000, Jorge convidou meu pai para fazer vinhos, com a ideia de fazer vinhos do Douro com um toque bordalês. Fizemos a primeira safra em 2002, que não foi para o mercado, porque o resultado foi bom, mas não do nível que esperávamos. Com a safra 2013, introduzimos o primeiro vinho em conjunto, o Xisto, que depois se tornou uma “cuvée”, que a gente só faz em anos especiais. E em 2006 lançamos o Roquette & Cazes.

Tomás Roquette - Fizemos o Xisto em 2003, 2004 e 2005. Depois, o Xisto passou a só ser lançado em quantidades menores e com uma exigência ainda maior de controle de qualidade. E apenas em safras excepcionais.

Quando iniciaram o projeto, a ideia já era fazer um vinho do Douro com toque bordalês ou isso foi algo que veio com a experiência?

JCC - (Aconteceu) naturalmente.

TRTemos uma frase que colocamos no rótulo: três castas, duas famílias, um terroir. E isso sempre foi a essência de tudo. Três castas (Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz), porque foram as castas que, desde o início, achamos que iriam funcionar bem num assemblage. Não necessariamente o mesmo corte com as mesmas porcentagens, mas para criar a base de um vinho que depois seria trabalhado de uma determinada forma, aí sim com o input que os Cazes trouxeram em termos de vinificação e de experiência. Para nós, da família Roquette, uma coisa estava muito clara quando surgiu a ideia desse projeto: queríamos fazer um vinho diferente do que já fazíamos no Crasto. Diferente no estilo, na vinificação, no estágio em barrica, no DNA que o vinho tem.

Foi mencionado na degustação que vocês apresentaram em conjunto que o principal aporte do lado Lynch Bages foi na vinificação e não no vinhedo. É isso?

TR - Vinificação, estágio em barricas, mas hoje cada vez mais também na parte de viticultura. O Daniel Llose (enólogo do Lynch Bages) vem com muita frequência a Portugal. Muitas vezes também vamos juntos, com o Jean-Charles e comigo, visitar nossas duas quintas no Douro Superior. É de lá que vem a nossa matéria-prima. São a Quinta da Cabreira e a Quinta do Meco, que pertence à família Cazes. Então, mesmo no nível de viticultura são tomadas decisões em conjunto, para que à altura da vindima o resultado seja aquele que programamos. É algo que tem que estar ligado à enologia, para dar um resultado final. Então vai um pouco além só da vinificação. E depois tem a própria decisão de fazer os blends, os lotes.

Quem participa dessa decisão?

TR - Esse é um dos momentos mais bonitos do projeto, porque nos reunimos ou no Douro ou em Bordeaux. Quando é em Bordeaux, levamos todas as amostras. Normalmente, Daniel Llose e Manuel Lobo, enólogos do Lynch Bages e do Crasto, preparam tudo com antecedência e nos juntamos todos. São cinco ou seis pessoas que ficam um dia inteiro avaliando as opções que os enólogos nos apresentam e a decisão é tomada em conjunto, por unanimidade. E é fácil. Provamos individualmente e partilhamos as opiniões.

Aproximadamente quantas amostras são avaliadas para chegar ao blend final?

TR - Hoje, diria que de todas as uvas que vinificamos para o projeto deve dar umas 20 fermentações diferentes para o Roquette & Cazes e para o Xisto, que é o crème da lacrème de tudo o que produzimos.

É no momento de discutir o blend que vocês também decidem se vão fazer o Xisto ou essa é uma decisão à parte?

JCC- É uma decisão que vem durante o blend, nos últimos momentos. Aí olhamos o que tivemos para fazer o Roquette & Cazes e o Xisto e tem anos em que é óbvio que temos matéria-prima para fazer o Xisto e tem anos em que a gente decide que é melhor fazer só o R&C.

Em 2011 (um grande ano para os vinhos do Porto e Douro DOC) vocês decidiram não fazer o Xisto?

JCC Mas tem anos que são um pouco mais difíceis e a gente consegue fazer o Xisto. Então, não é uma ciência exata.

TR- O Douro é a maior região de viticultura de altitude no mundo, mas tem muitas particularidades. A cada esquina que se dobra temos uma exposição (solar) diferente, uma altitude diferente, microterroirs diferentes. É um verdadeiro puzzle. Muitas vezes, aquele que genericamente é um excelente ano em Portugal, ou menos positivo em Portugal, não tem necessariamente que ser bom ou mau no Douro. Dou um exemplo.

A intenção é saber o que é um ano ideal para essas vinhas que vocês têm no Douro Superior?

JCC- Depende. Acho que fazemos o Xisto nos anos em que conseguimos fazer Xisto sem prejudicar o Roquette & Cazes. Isso é muito importante, porque, às vezes, seria fácil tirar o melhor do R&C para fazer o Xisto. Para mim, o R&C é a base do projeto, é o estilo da casa e tem que ter uma certa qualidade todos os anos. E tem anos em que a gente tem um lote a parte que se destaca e pode fazer o Xisto.

Então o processo é o inverso do utilizado pelas grandes casas de Bordeaux, em que o segundo vinho sai do que não foi utilizado para fazer o primeiro?

JCC-O R&C não é um segundo vinho. É a base. O Xisto é a exceção.

Quando conversamos há dois anos, Jean-Charles, você nos disse que se tomasse três decisões mais importantes e acertadas sua família ficaria feliz com a sua condução da empresa. Essas decisões seriam a data da colheita, o blend e o preço de venda. O que muda no caso de Portugal, excluindo-se obviamente a primeira?

JCC - Na primeira, obviamente, não estou envolvido. Confio 100% nas decisões do Daniel com o Manuel e o Tomás. Na decisão do blend, minha responsabilidade é de 50%. Mas é muito agradável ter essa opção de trocar ideias e tomar uma decisão em conjunto, porque você fica mais seguro. O preço é mais simples, porque no caso do R&C e do Xisto é estável, pois temos uma distribuição exclusiva. É muito diferente de Bordeaux com o sistema de “négociants” e a volatilidade nos preços. Então, nesse projeto é muito mais confortável para mim.

O Douro Superior

Como é o terroir das quintas no Douro Superior?

TR- O solo é muito pobre. O que nós temos é unicamente rocha por baixo, com uma camada de matéria orgânica (terra) de no máximo dois palmos. É um terroir muito agreste, que obriga as vinhas a um exercício muito forte para se enraizar e procurar água. E há uma diferença no nível de precipitação em relação ao Cima Corgo. Chove menos no Douro Superior, mas não é uma diferença muito grande. O que acontece é que, quando chove no Douro Superior, chove de forma intensa e concentrada. E como temos pouca terra para absorver a água, grande parte dela escorre para o rio. São pequenos pormenores que fazem uma diferença muito grande em relação a outras sub-regiões do Douro, mas que tornam aquele terroir único e muito típico, mas que é fantástico para produzir vinhos.

Vocês plantaram outras variedades antes de eleger as três (Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz) como castas básicas, ou acertaram logo de cara?

JCC- Acertamos direto o que queríamos fazer. Para nós era óbvio, da nossa experiência conjunta em provar vinhos dessa região e das castas usadas no Douro, usar a Touriga Nacional e a Touriga Franca.

TR -Achamos que essas três uvas, naquele terroir, são o fio condutor para trazer o que a terra nos dá e colocar numa garrafa de vinho. Mas poderíamos ter outras opções e temos pequenas parcelas plantadas com outras uvas portuguesas.

Há uma tendência a se pensar que a Touriga Nacional seria de cultivo mais difícil do que o de outras variedades no Douro Superior. Até que ponto isso é verdadeiro?

TR- Sendo uma casta muito exuberante, para ter boa Touriga Nacional tem que procurar os solos mais pobres. Então, a adaptabilidade da TN é excelente no Douro Superior, embora ache que a Touriga Franca ainda supere isso. Mas há vários pormenores que tem que ser cuidados. E uma coisa é certa: já estamos sentindo os efeitos das alterações climáticas no Douro claramente. Para nós, isso é um desafio e fonte de alguma preocupação em relação ao futuro. O Jean-Charles poderia falar um pouco sobre o que está acontecendo em Bordeaux.

JCC- Em Bordeaux, as alterações climáticas têm sido mais violentas e frequentes. Chuva, granizo, calor. Mas acho que o desafio não vai ser a (disponibilidade de) água. Vai ser o aumento das temperaturas e os fenômenos mais extremos. A Cabernet é uma casta que tem potencial de se adaptar a 2, 3 graus de temperatura média a mais. Agora, se a temperatura e o clima mudarem muito mais que isso, quem sabe o que pode acontecer. E aí os problemas vão ser diferentes. E não só para a viticultura.Há castas que vão talvez evoluir bem, como é o caso de Cabernet e Petit Verdot, que têm um ciclo vegetativo mais longo, e que vão amadurecer melhor com mais frequência. Mas a Merlot talvez vai sofrer um pouco mais.

"A ideia não foi fazer um copyand paste das técnicas bordalesas, mas usar algumas ideias de Bordeaux, para fazer um vinho com a exuberância e a generosidade do Douro", Jean-Charles Caze

Como vocês vêm a questão de caminhar para o orgânico, embora não necessariamente para o biodinâmico. Isso é realmente uma tendência ou tem um pouco de modismo?

JCC- É uma pergunta ampla. Temos um desafio de fazer evoluir a viticultura. De uma viticultura ancestral, que usava produtos como calda bordalesa (nota: preparado usado tradicionalmente para combater pragas), cobre, enxofre e depois pesticidas, para uma viticultura mais sustentável. E em Bordeaux temos o desafio da chuva, porque é uma região com 800 mm de precipitação por ano. É uma realidade bem diferente no Douro. Temos uma pressão grande do míldio e de outros parasitas. Os tratamentos mudaram muito. Hoje, fazemos menos (tratamentos) do que na época do meu pai, porque usamos outros recursos como a “confusão sexual” e outros métodos. Mas acredito que o orgânico é interessante. O problema é que a resposta do orgânico é usar mais calda bordalesa e tem o problema do cobre que se acumula no solo e que não é biodegradável (nota: os tratamentos à base de cobre, inclusive calda bordalesa, são aceitos pela biodinâmica até certos limites). Então, tem que ter uma reflexão global sobre o impacto no meio ambiente. Não é só dizer que orgânico e biológico é o único caminho, porque você tem que dobrar os tratamentos. Tem um outro aspecto que acho mais uma moda, ou uma religião, que é a biodinâmica. Para mim, isso é muito diferente de uma problemática de meio ambiente. Isso tem a ver com uma crença, porque não tem base científica. E, às vezes, isso é muito usado para efeitos de marketing.

A questão é essa separação que dá a entender que um vinho é melhor do que o outro ou que um vinho é puro, o outro não?

JCC- O vinho é uma construção humana. E tem uma outra tendência que é não usar sulfitos, que são os vinhos naturais. Para mim, o estado natural do vinho é vinagre. O vinho foi inventado quando os holandeses começaram a queimar enxofre nos barris como forma de higiene e para manter o vinho por mais tempo. O vinho era tomado novo, da época da colheita até o final do inverno, e depois evoluía como vinagre e o pessoal continuava a tomar esse vinho com gosto de vinagre. Isso mudou com o uso do enxofre, que é um conservante natural. Para mim, o vinho é uma construção humana assim como os terroirs. Essa ideia ou filosofia de voltar a um estado totalmente natural é um absurdo.

TR - Existe uma série de coisas que não têm que ser tão divulgadas, mas que deveriam acontecer naturalmente em todos os lugares. Essa preocupação já é um pouco global, mas não deve se tornar uma coisa extremada, porque muitas vezes pode chegar ao ridículo.

Gostaríamos que vocês descrevessem o processo de vinificação do R&C e o que alguém deveria encontrar no vinho em termos de estilo e características.

JCC- O processo de vinificação foi um pouco adaptado das técnicas clássicas de vinificação do Douro. Temos três tanques de fermentação cônicos, que usamos em Bordeaux, para fazer todo o processo de maceração. São três semanas de maceração com muita remontagem e délestage na primeira fase da fermentação, para extração dos taninos e polifenóis, ter muita cor e fazer vinhos generosos. E a ideia não foi fazer um copyand paste das técnicas bordalesas, mas usar algumas ideias de Bordeaux, para fazer um vinho com a exuberância e a generosidade do Douro, que são vinhos solares. Também concordamos em colher as uvas um pouco mais cedo, para manter o equilíbrio entre acidez e maturidade (fenólica). Então ter essa generosidade e capacidade de envelhecer com harmonia e elegância, e essa facilidade de beber, que é a característica mais importante dos vinhos que fazemos no Douro ou em Bordeaux.

TR- Há aqui um conjunto de técnicas e de inputs que eles trouxeram. Mas o que mais me impressionou foi no resultado final ter um vinho com tudo muito evidente, com todo o potencial do Douro na parte aromática, mas superelegante na boca. Foi uma grande surpresa ver o resultado final dos nossos vinhos através desse método um pouco diferente de vinificação. Inclusive, até mudamos a forma como fazíamos algumas coisas nos vinhos do Crasto.

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