Conheça como viticultores do mundo todo estão trabalhando nas questões climáticas e sustentáveis
por Arnaldo Grizzo
Produtores de todo o mundo buscam alternativas para acompanhar as mudanças climáticas que atingem todo o planeta e já começam a comprometer o cultivo de diversos alimentos, incluindo de uvas.
O vinho é uma bebida bastante susceptível a variações de temperatura. Estudos mostram que tão ruim quanto manter uma garrafa em temperatura acima do desejável é ter alternância de temperaturas em curtos espaços de tempo.
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Isso faz com que o vinho evolua de uma forma indesejada, comprometendo a sua apreciação. Pode-se dizer que, nesse aspecto, o vinho se comporta tal qual a videira. E, em um mundo cujas mudanças climáticas são cada vez mais prementes, a vitivinicultura está em alerta constante.
Talvez as primeiras considerações mais sérias sobre a questão climática mundial tenham ocorrido em 1972, em Estocolmo, em uma convenção da ONU. No entanto, somente 20 anos depois, na famosa Eco-92 (ou Rio-92), é que governantes do mundo todo se reuniram para definir alguns parâmetros para ações que ajudassem a preservar o meio ambiente.
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Na época, muitas das nações mais ricas e também as em desenvolvimento evitaram acatar compromissos mais severos em relação à redução de emissões de carbono, por exemplo, com receio de frear seus crescimentos econômicos.
Ainda assim, algumas agendas foram elaboradas e novas reuniões ocorreram posteriormente, algumas com resultados um pouco mais promissores, outras menos.
Mas a verdade é que, até o momento, nada freou o aquecimento global e apenas as políticas governamentais – esporádicas ou permanentes – de alguns países não surtiram o efeito esperado.
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Em muitos locais, as questões ambientais e sustentáveis ainda são marginais. E, devido muitas vezes à inépcia dos governantes, as ações passaram a ser tomadas pelas próprias pessoas, muitas hasteando a bandeira da sustentabilidade independentemente das políticas públicas. E aqui encontramos a indústria do vinho.
O cientista australiano Richard Smart, expert em viticultura sustentável, costuma comparar a vitivinicultura ao “canário na mina” da agricultura. Em sua visão, a indústria do vinho é a mais susceptível aos problemas climáticos, sendo afetada diretamente por qualquer tipo de alteração mínima e, convenhamos, as alterações vistas recentemente não têm sido tão “mínimas” assim.
Geadas inesperadas e constantes, secas intensas e prolongadas, calor sufocante capaz de causar incêndios, tempestades corriqueiras etc., muitas vezes são fenômenos – esporádicos ou permanentes dependendo da região – que não afetam demasiadamente algumas culturas mais resistentes, ou então, se afetam, têm alcance muito limitado.
No entanto, para a vinha, basta uma ocorrência extrema e tudo pode estar perdido. E é isso que os produtores de vinho têm visto com cada vez mais frequência nos últimos anos e, por isso, estão se mobilizando.
Apesar de vermos muitas notícias sobre ações de sustentabilidade na vitivinicultura recentemente, algumas mudanças e atitudes já estão sendo planejadas há alguns anos. São diversas as vinícolas e também associações que, há algum tempo, buscam não somente uma produção mais sustentável como também possíveis soluções para os efeitos climáticos.
Acredita-se que uma das razões para uma série de safras “históricas” em regiões consagradas como Bordeaux e Borgonha neste novo milênio se deve ao aumento de temperatura que favoreceu o amadurecimento mais uniforme das uvas, tornando o clima de certa forma favorável nesses locais.
Contudo, ao mesmo tempo, o que se vê é um aumento também de eventos extremos, como as geadas de primavera deste ano que literalmente arrasaram vinhedos inteiros na Borgonha. Estudos mostram também que o crescente aumento da temperatura em regiões clássicas pode tornar inviável a produção de algumas uvas tradicionais – o que descaracterizaria o vinho local.
É por essa razão que diversos produtores têm recorrido a regiões mais frias no mapa, buscando locais que, até então, estavam inexplorados pela vitivinicultura de qualidade, considerados extremos demais.
Com isso, nunca se viu uma expansão do mapa vitivinícola mundial como hoje em dia. “Nós já fizemos uma mudança para uma região mais fria há 25 anos, quando meu pai mudou a agricultura Argentina para o vale do Uco”, recordou Laura Catena em entrevista à ADEGA. No entanto, hoje, mesmo com uma boa posição no Uco – um dos locais mais efervescentes do vinho argentino –, os produtores estão vasculhando terroirs ainda mais ao sul, na Patagônia extrema, em busca tanto do frio quanto de água – outra questão relevante para a vitivinicultura.
O mesmo fenômeno tem sido observado no Chile, em que produtores estão criando projetos na região de Osorno e até mesmo mais ao sul do país, na ilha de Chiloé, por exemplo, onde a Viña Montes tem tentado cultivar algumas uvas clássicas, assim como outras menos conhecidas.
“Onde antes era impensável ter vinhas em um lugar como Osorno, as temperaturas mais altas e os níveis de chuva reduzidos estão nos permitindo atingir uma boa maturação e mitigar o risco de fungos”, aponta Eduardo Jordan, enólogo da Miguel Torres.
Já no hemisfério Norte, vai-se mais ao norte, obviamente. A Inglaterra, por exemplo, aparece hoje como um dos terroirs com maior potencial para a produção de espumantes de qualidade.
Em 2015, uma das mais respeitadas casas de Champagne, a Taittinger, iniciou um projeto em Kent. “Acreditamos que a combinação de solos calcários, clima e topografia em Kent são ideais e muito semelhantes aos do terroir de Champagne”, afirmou Pierre-Emmanuel Taittinger, cujos passos foram logo seguidos pela Pommery, por exemplo.
E cada vez mais surgem produtores em locais pouco falados como regiões do norte da Alemanha, Bélgica, Dinamarca e até mesmo Suécia e Noruega, assim como em Ontário ou na Colúmbia Britânica, no Canadá. Ainda não se sabe onde o mapa vitivinícola pode parar.
Mas se nem sempre é possível se deslocar para áreas mais ao norte ou mais ao sul, o que muitos produtores têm feito é buscar altura. Assim, voltando à conversa com Laura Catena, a busca por vinhedos de altitude tem sido constante na Argentina. Ela, aliás, afirma que os grandes vinhos do país hoje são blends de altura, no caso, Malbecs plantados em diferentes altitudes nos Andes.
Entre os estudos que Catena faz do terroir argentino, um aponta que a escala de Winkler – um sistema de classificação para regiões vinícolas com base nas temperaturas médias dentro de um determinado período – mostra que os distintos microclimas de Mendoza, especialmente do Uco, podem equivaler ao de regiões como Napa, Bordeaux ou Champagne dependendo da altitude. Pela escala, Gualtallary, por exemplo, poderia equivaler climaticamente a Barolo.
Isso não ocorre somente na Argentina ou no Chile, onde os Andes podem oferecer diferentes terraços e altitudes, mas também em locais como a Espanha, onde a família Torres começou a cultivar nos Pirineus, especialmente suas uvas para espumantes.
“Cava é um lugar plano, sem altura, perto do mar, então custa muito manter a acidez, o frescor, o nervo dos vinhos. E isso, para o espumante, é básico. Espumante é construído numa espinha de acidez e depois vêm os outros complementos. Então mudamos para locais mais altos”, contou o enólogo Josep Sabarich à ADEGA alguns anos atrás.
E até mesmo na Borgonha, em que algumas regiões mais altas como as Hautes-Côtes (altas encostas), antes pouco consideradas na produção dos vinhos locais, agora estão entrando na mira dos produtores e também dos consumidores.
Mudar para o alto nem sempre significa que os picos de temperatura serão muito mais frios, mas o calor tende a durar por períodos mais curtos e as temperaturas noturnas são mais frias. E essa diferença de temperatura ao longo do dia favorece um amadurecimento mais uniforme.
Todavia, estar na altitude muitas vezes significa luz extrema – que Laura Catena explicou ser capaz de remediar deixando mais folhas na videira –, solos mais pobres, falta de água e susceptibilidade a eventos climáticos extremos como geadas ou granizo.
Outro fenômeno que tem ocorrido especialmente nas regiões vinícolas do hemisfério norte é a preferência por vinhedos de face norte – uma mudança de mentalidade graças ao clima. Antes, os produtores favoreciam encostas voltadas ao sul, pois são as que recebem mais sol durante o dia, o que ajuda no amadurecimento da uvas. Mas hoje é diferente.
Em entrevista à ADEGA, a enóloga Olga Martins lembrou da criação de seu projeto Poeira, juntamente com seu marido Jorge Moreira, em 2001. “Queríamos encontrar uma vinha numa zona boa, quente, com sol, bom terroir, mas com exposição norte, contrariamente ao que as pessoas procuravam. Na época, não se falava de vinhos virados ao norte, de vinhos frescos no Douro. Era só concentração, intensidade, exuberância. Nunca palavras como elegância, acidez, frescor eram usadas para descrever um vinho do Douro”, recorda e complementa: “Temos muito calor, mas, com a vinha virada ao norte, não há sol direto. Há calor, maturação, nossos vinhos têm álcool, mas conseguirmos uma maturação ligeiramente mais lenta do que a face sul e, com isso, temos uma paleta de aromas mais complexa”.
Esse pensamento também tem afetado a forma como as linhas dos novos vinhedos estão sendo orientadas no mundo todo, visando proteger as uvas do sol mais intenso das tardes.
Por fim, há algum tempo vemos algo que até então poderia parecer impossível na cabeça dos mais tradicionalistas: o uso de novas variedades em regiões consagradas. Quando em 2017, por exemplo, produtores de Franciacorta cogitaram a utilização da obscura cepa Erbamat (uma casta branca de maturação tardia) pensando nos efeitos que as mudanças climáticas têm provocado em seus espumantes, não houve muito alarde. No entanto, quando este ano o Institut National de l'Origine et de la Qualite (INAO) da França aprovou oficialmente seis novas variedades para serem usadas nos vinhos de Bordeaux, o impacto foi tremendo.
Segundo o Conselho de Vinhos de Bordeaux (CIVB), a decisão ocorreu após “mais de uma década de pesquisas por enólogos e produtores de Bordeaux para abordar o impacto das mudanças climáticas por meio de medidas ecologicamente corretas altamente inovadoras”.
As variedades aprovadas são quatro tintas (Arinarnoa, Castets, Marselan e Touriga Nacional) e duas brancas (Alvarinho e Liliorila), tidas como “bem adaptadas para aliviar o estresse hídrico associado a aumentos de temperatura e ciclos de crescimento mais curtos”. Por enquanto, elas estão autorizadas em denominações menores, mas, ao que parece, pode ser questão de tempo para que vejamos novos cortes em clássicos como Margaux, Mouton, Lafite, etc.
Na Toscana, por exemplo, o icônico Castello Banfi iniciou experimentos não somente com clones diferentes de Sangiovese, mas também castas pouco convencionais como a georgiana Saperavi. A ideia é ter uvas que sejam resistentes a botrytis, com casca grossa e menor floração, o que as tornaria capazes de prosperar na Toscana sem serem borrifadas com produtos químicos. “O objetivo é obter, no futuro, novas variedades e porta-enxertos capazes de sobreviver naturalmente”, afirmou um porta-voz da Banfi.
Mas a busca por variedades não se restringe às regiões até então consideradas mais frias. Na África do Sul, produtores vêm testando cepas resistentes à seca, como Assyrtico e Marselan, por exemplo. Já viticultores australianos experimentam uvas italianas como Fiano, Vermentino e Nero d’Avola, que se dão melhor em ambientes mais quentes. Contudo, replantar pode significar descaracterizar um produto muito tradicional e, por isso, ainda há muito trabalho pela frente.
Regiões mais frias, mais altas, exposições diferentes, uvas diversas... Nada disso pode adiantar se as mudanças não ocorrerem, não somente no mundo de forma global, mas na indústria do vinho, cujos impactos no ambiente também não podem ser esquecidos.
É por isso que, cada vez mais, vê-se produtores preocupados com as questões de sustentabilidade e os líderes da indústria estão se organizando, como na conferência Protocolo do Porto em 2019, que reuniu ativistas como Al Gore, assim como o ex-presidente norte-americano Barack Obama, entre outros, e apresentou algumas medidas a serem tomadas pela vitivinicultura mundial no esforço de preservar o meio ambiente.
Um número cada vez maior de produtores está repensando o manejo do vinhedo e do solo, a treliça de videiras ou técnicas de poda, desenvolvendo culturas de cobertura e métodos extensivos de sombreamento, aumentando a biodiversidade dos vinhedos e encontrando maneiras de reutilizar a água. Mas os métodos que estão sendo concebidos agora podem não ser aplicáveis no futuro. Embora existam vários modelos para tentar prever mudanças, eles estão tentando rastrear um problema que depende de uma série de cenários futuros.
A situação crítica inspirou pesquisadores a simular alguns cenários. Cientistas da Universidade Hochschule, na Alemanha, construíram um sistema complexo de seis ventiladores, três dos quais sopram dióxido de carbono em fileiras de Riesling e Cabernet Sauvignon, enquanto os outros três sopram ar normal.
Os pesquisadores aumentaram a concentração de CO2 no vinhedo em aproximadamente 20%, os níveis esperados para ocorrer em todo o mundo até 2050. Diante desse modelo, eles viram que o dióxido de carbono fez com que as uvas concentrassem açúcares e ficassem maiores.
Os cachos também cresceram mais e com mais bagos. Isso pode parecer bom, mas também pode revelar que as videiras estejam absorvendo muito mais água do que o normal, o que esgota as reservas subterrâneas. E, além disso, percebeu-se que o ecossistema circundante foi afetado com as mariposas se reproduzindo mais rapidamente, resultando em mais larvas comedoras de uva, por exemplo.
“Não importa em que parte do setor você esteja, você precisa reduzir sua pegada de carbono, ponto final. As necessidades de cada um são diferentes e realmente dependem da região. A única linha que funciona para todos é cortar as emissões de carbono, que é a ação de emergência que precisa ser tomada”, aponta Michelle Bouffard, fundadora da conferência Tasting Climate Change.
E algumas empresas não se fazem de rogadas diante disso. A Família Torres, por exemplo, não somente está promovendo cortes severos nas emissões de carbono de suas próprias atividades, como também criou uma associação com foco em ações sustentáveis e redução de emissões, a International Wineries for Climate Action (IWCA), fundada em colaboração com a vinícola norte-americana Jackson Family Wines.
Suas bases são bastante rígidas, com metas ousadas e requerimentos duros de curto, médio e longo prazo para os postulantes a uma vaga. Ainda assim, em pouco tempo, diversas vinícolas já se candidataram e cinco já ganharam o status de “gold member”: Spottswoode, VSPT Wine Group, Yealands, Alma Carraovejas e Viñas Familia Gil. Há ainda mais de 20 “silver members” e uma lista de “applicants” com nomes como Opus One, Concha y Toro, Ramón Bilbao etc.
Todos eles, além de se comprometerem a baixar suas próprias emissões internas, também precisam pensar globalmente, em toda a cadeia, reduzindo o impacto de terceiros, por exemplo.
Essas são apenas algumas das ações mais destacadas recentemente, contudo, vê-se cada vez mais produtores, grandes ou pequenos, preocupados com técnicas de cultivo orgânicas ou biodinâmicas, reutilização de água e insumos, uso de energia limpa ou geração própria renovável, envases alternativos menos poluentes, políticas de fair trade, etc. O mundo do vinho nunca esteve tão consciente do seu papel no meio ambiente. O canário não quer morrer na mina.
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