O mais antigo enólogo português fala sobre a importância de Portugal para o mundo do vinho e outros assuntos
por Eduardo Milan e Giuliano Agmont
O sobrenome Saramago inspira reverência em Portugal. Mas engana-se quem imagina que seja somente pela literatura. Assim como nas letras, um Saramago (que não tem parentesco com o escritor, tampouco afinidade política) inovou e fez história na vitivinicultura de seu país. Com mais de 50 anos de carreira, António José Ribeiro Saramago é um dos principais nomes da enologia portuguesa.
Apesar de só ter experimentado seu primeiro vinho aos 20 anos, António Saramago trabalhava desde os 14 no laboratório de enologia de uma das mais renomadas vinícolas de Portugal, a José Maria da Fonseca, onde permaneceu por 42 anos sendo responsável por grandes clássicos, como o rótulo Periquita, por exemplo.
Em sua trajetória, ele teve a oportunidade de acompanhar diversos grandes mestres da enologia portuguesa, assim como estudar em Bordeaux. Com o tempo, montou seu próprio projeto de vinhos autorais nas duas regiões onde se sente mais à vontade, Alentejo e, especialmente, Península de Setúbal. Mais do que isso, trabalhando com uma variedade desafiadora, mas que é a sua grande paixão, a Castelão. De volta ao Brasil, Saramago recebeu a reportagem da revista ADEGA para esta entrevista em que compartilha pensamentos e ensinamentos de um genuíno mestre da arte de produzir vinhos.
Como começou sua carreira?
Nasci em Vila Nogueira de Azeitão. Tenho 68 anos, sou atualmente o enólogo mais antigo em atividade em Portugal. Comecei no mundo do vinho em uma grande empresa chamada José Maria da Fonseca. Meu pai era o encarregado dos armazéns e comecei com 14 anos, no laboratório. Mais tarde, me formei em enologia em Bordeaux. Aprendi com grandes mestres lá, como Pascal Ribéreau-Gayon e ainda com Manuel Vieira e Antonio Soares Franco, que, naquela época, eram as grandes figuras da enologia em Portugal. Estive na empresa por 42 anos e fiz dela uma grande escola, porque ela faz todo tipo de vinho.
O que efetivamente motivou seu início com apenas 14 anos?
Eu não bebia nem gostava de vinho. Entrei em uma empresa que produzia vinho, mas não gostava. Só comecei beber vinho a partir dos 20 anos de idade. O vinho é um produto tão nobre que, pouco a pouco, vamos pegando gosto e hoje não passo uma refeição sem ele. Apaixonei-me por isso.
Lembra-se de sua primeira taça de vinho?
Lembro perfeitamente. Lembro-me de primeiro degustar os vinhos brancos, que têm alguma tradição naquela região. As pessoas com quem trabalhava diziam que eu tinha de provar, tinha de ter noção do que são os aromas, os sabores, essas coisas todas. E era complicado, pois não estava habituado, só bebia água. É engraçado, porque hoje acho que a minha sensação e o que sinto como provador talvez tenha algo a ver com o fato de provar vinhos já com certa idade. Hoje em dia é fácil.
Pode-se dizer que provou muitos vinhos ao longo da carreira...
Um enólogo hoje deve fazer um exercício muito simples. Deve, pelo menos, provar todos os vinhos ícones que existem no mundo, e estou falando dos Latour, Pétrus, de grandes vinhos. Tive a oportunidade de provar vinhos assim. Também é preciso que estudemos sempre que possível, pois é uma formação contínua. São conhecimentos que vamos adquirindo ao longo dos anos com nossa experiência. O vinho é um produto vivo, que está nos transmitindo constantemente sensações, não só olfativas como gustativas e, de fato, a experiência, ao longo dos anos, permite falar com o vinho com facilidade e com conhecimento.
Se eles não tiverem acidez, digo que são vinhos anêmicos. A acidez do vinho representa o sangue em nosso organismo e, quando eles não têm acidez, não irão viver muito
Como foi a evolução até chegar ao seu próprio projeto atualmente?
Saí da Fonseca em 2001. Naquela época, já fazia alguns trabalhos de consultoria de enologia em outras empresas, principalmente na região de Alentejo. Penso que, naquela região, fui um pouco inovador, ajudei no desenvolvimento da casta Cabernet Sauvingon, pois quase não existia trabalho com Cabernet. Assim como Chardonnay. Foi bem inovador mesmo. Fui o primeiro enólogo do Alentejo a introduzir a barrica nova na fase de estágio do vinho. Modéstia à parte, acho que meu nome contribuiu muito para que a enologia portuguesa se tornasse cada vez mais conhecida no mundo. Após esse trabalho, decidi fazer meus próprios vinhos. Como se costuma dizer, fazer vinhos de assinatura. Vinhos que tenham a ver com a minha identidade e com a minha filosofia. Montei um projeto com minha família, minha mulher e meus dois filhos. Decidi fazer vinhos de grandes regiões onde eu tinha conhecimento, como Península de Setúbal e Alentejo. Queria fazer vinhos de identidade e, acima de tudo, com a minha identidade. Muita gente que me conhece associa meus vinhos à minha pessoa. Cada enólogo tem o seu jeito de criar um vinho. Se você tiver a possibilidade de tomar esses vinhos, vai notar que são um pouquinho diferentes. As diferenças são interessantíssimas, pois não sou capaz de produzir vinhos que não tenham uma boa relação de acidez com taninos e álcool, porque, se eles não tiverem acidez, digo que são vinhos anêmicos. A acidez do vinho representa o sangue em nosso organismo e, quando eles não têm acidez, não irão viver muito. Essa é minha marca, com certeza. Você guarda meus vinhos e, após 15 anos, vai ver que estão vivos. Deve-se fazer vinhos com grande consistência e longevidade.
Optou por não ter vinhedos próprios, por quê?
Embora não tenha meus próprios vinhedos, conheço as vinhas há muito tempo. Conheço bem minha região, os donos das vinhas, e é mais fácil fazer esse trabalho com vinhas em pequenas parcelas. Não possuo mais de 4 hectares de vinhas primeiro porque, em uma safra ruim, os prejuízos são grandes. Para mim, o importante é a qualidade das vinhas e o controle de maturação, e isso consigo em parcelas muito pequenas. Assim nascem os grandes vinhos.
Quais as diferenças de trabalhar no Alentejo e na Península de Setúbal?
A Península de Setúbal é uma região muito próxima do oceano Atlântico e tem um clima muito influenciado pelo mar. Já o Alentejo é mais no interior, onde você tem mais calor. Elas são regiões ‘invertidas’. Você tem mais calor no Alentejo e menos chuva. Na Península de Setúbal, você tem mais chuva e menos calor, e isso ajuda a produzir vinhos com perfil e complexidade diferentes, que possam envelhecer com consistência. Os vinhos da Península de Setúbal são muito mais rústicos de beber e com um perfil muito mais ácido, o que os faz viver por muito mais tempo.
Qual é a importância de Portugal para o mundo do vinho?
Portugal é um dos países, além da Itália e da França, mais conhecidos no mundo, especialmente pelo Vinho do Porto, que é prestigiado em todo o planeta. Posso dizer que Portugal faz parte da história do vinho. Tem uma grande variedade de castas, e não é por acaso, é exatamente por essa tradição. Existem muitas castas portuguesas que ninguém menciona, que ainda não foram trabalhadas como devem ser. A última, que foi muito trabalhada, foi a Verdelho, uma casta da Ilha da Madeira, e hoje em dia ela é conhecida em todo o mundo, mas não por Portugal e sim pela Austrália, que a trabalhou. Portugal é um país que não valoriza o que tem. O grande presente que Portugal pode dar ao mundo vitivinícola é a grande quantidade de castas – que ainda dão muito trabalho para fazer. Digo isso para a nova geração de enólogos.
Existem muitas castas portuguesas que ninguém menciona, que ainda não foram trabalhadas como devem ser
De onde surgiu a paixão pela variedade Castelão?
Nasci na Península de Setúbal e a casta que identifica a região é a Castelão. Ela transmite nossa identidade. É uma casta muito difícil de trabalhar. Mas gosto de trabalhar com aquilo que conheço, com aquilo que sei fazer bem. E a Castelão é uma casta que sei fazer bem, até pelo conhecimento de meio século de profissão e por ser um dos melhores terroirs que existem na região. Uma das coisas que me apaixonam mais é uma casta com a qual temos que lutar muito para atingir objetivos, que é resistente ao nosso trabalho. Fazer uma coisa facilmente não nos transmite aquele entusiasmo para fazermos bem. Estamos sempre a pensar que não podemos atingir o objetivo, mas tendo conhecimento da casta como tenho, chegaremos lá.
Por que possui um vinho que se chama Dúvida?
Quando pensei em fazer o vinho, ele nasceu muito bem, com uvas de uma vinha muito velha. Realmente uma coisa fantástica, com a técnica de maturações fermentativas e pré-fermentativas, depois comprei nove barricas de carvalho francês, as melhores do mundo. Então, com cerca de nove meses de barrica, o vinho não transmitiu nada na barrica nova. Eu disse ao meu filho que estava desiludido porque o vinho, ao fim desses meses todos de barrica, não estava “dizendo” nada. Estava muito fraco. Então lembrei de uma conversa com Peter Sisseck (Pingus), em Bordeaux. O vinho precisava duas vezes da barrica. Faço vinhos com muita maturação, eles aguentam. Então, no fim do ano, tirei das barricas novas e coloquei no tanque. Comprei mais barricas e coloquei o vinho nelas. Só que, antes de comprar, falei para o meu filho que estava com dúvidas em relação ao vinho, pois ia gastar muito dinheiro em novas barricas. Meu filho me disse: ‘Pai, seja o que Deus quiser, vamos jogar’. Na segunda barrica, o vinho, no quinto mês, foi uma explosão de aromas. Essa simbiose do vinho com a madeira, com a qualidade da madeira. E meu filho disse: ‘Já tenho um nome para o vinho, será Dúvida’, porque tínhamos dúvida se comprávamos ou não as segundas barricas.
Uma das coisas que me apaixonam mais é uma casta com a qual temos que lutar muito para atingir objetivos, que é resistente ao nosso trabalho
Como acha que o mundo do vinho evoluiu nesses 52 anos de carreira?
O mundo mudou e o mundo vai mudando. O consumidor de vinho de hoje não é o mesmo de 10, 20, 30 anos atrás. Tudo mudou. Felizmente, aqui no Brasil também mudou muito. A primeira vez que vim ao Brasil foi em 1989, há 27 anos, e posso dizer que aqui, em um restaurante, tinha apenas uma mesa consumindo vinho e, em todas as outras, cerveja. Felizmente, isso mudou e hoje podemos ver que todas as mesas consomem vinho. Cada enólogo tem a sua concepção de fazer um vinho e também temos que lembrar que não somos nós que bebemos o vinho, temos que fazer vinhos para o consumidor. Acima de tudo para o novo consumidor. São vinhos com outro tipo de aromas, mais frescos, muito mais leves e elegantes. O mundo está consumindo um vinho diferente hoje. O enólogo tem de saber disso. Qual é objetivo que vamos atingir? Temos que fazer vinho para esse segmento de mercado.
AD 91 pontos
ANTÓNIO SARAMAGO WINEMAKER TINTO 2013
António Saramago, Península de Setúbal, Portugal. 100% Castelão de vinhas de mais de 30 anos, fermentado em lagar e sem passagem por madeira. Muito bem feito, surpreende pelo volume e qualidade de fruta, com boa harmonia entre opulência, untuosidade e frescor, com taninos de ótima textura, acidez refrescante e final persistente, com toques minerais. Álcool 14,5%. EM
AD 94 pontos
A.S. CINQUENTA 2009
António Saramago, Península de Setúbal, Portugal. Tinto composto de 90% Castelão de vinhedos de mais de 50 anos e os 10% restantes de Alicante Bouschet e Touriga Nacional, com estágio de 18 meses em barricas de carvalho francês. Impressionante equilíbrio entre fruta madura, frescor, mineralidade e textura de taninos. Eleva a Castelão a um padrão de finesse e precisão pouco usual, demonstrando o real potencial dessa variedade, muitas vezes tão maltratada. Álcool 14%. EM
AD 93 pontos
DÚVIDA 2005
António Saramago, Alentejo, Portugal. Tinto composto de Aragonês, Trincadeira e Grand Noir, com estágio de oito meses em barricas novas de carvalho francês e depois mais oito meses em barricas novas de carvalho americano antes de ser engarrafado. Num estilo mais untuoso e cheio de fruta, mas com acidez refrescante e estrutura de taninos que trazem equilíbrio e vivacidade ao conjunto. Aqui os anos a mais de garrafa trouxeram ainda mais elegância e complexidade. Álcool 14%. EM
AD 93 pontos
DÚVIDA 2008
António Saramago, Alentejo, Portugal. Tinto composto de Aragonês, Trincadeira e Grand Noir, com estágio de 12 meses em barricas novas de carvalho francês e depois mais 12 meses em barricas novas de carvalho americano antes de ser engarrafado. Mostra complexos aromas de frutas negras seguidos de notas florais e de especiarias doces, além de toques de chocolate e alcaçuz. Potente, estruturado e redondo, tem taninos de excelente textura e final cheio e persistente, com toques de grafite e de ameixas. Álcool 15%. EM
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