É possível treinar o nariz para reconhecer os aromas dos vinhos
por Sílvia Mascella Rosa
Degustar é um exercício sensorial poderoso que, como todo exercício, fica mais fácil com a prática
Poucas coisas desanimam mais quem está se iniciando no mundo dos vinhos do que um enófilo que faz uma descrição pra lá de rebuscada e impossível de acompanhar dos aromas de um produto.
Frases como “caixa de chapéu”, “bosques úmidos da Dinamarca” e “úbere de vaca”, são capazes de minar a paciência de qualquer pessoa que esteja passando pela fase de reconhecer as frutas vermelhas num vinho tinto e o abacaxi em calda num vinho branco. E muita gente se pergunta se essas descrições realmente são válidas. Bem, a má notícia é que - apesar de extrapoladas - elas são válidas sim, entre pessoas que são capazes de compartilhá-las, obviamente. E a boa notícia é que elas são menos absurdas do que parecem e é possível treinar o nariz para chegar lá.
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Numa degustação o nariz é uma parte essencial por dois motivos: por ser ligado ao bulbo olfativo e à via retronasal, ou seja, é no bulbo olfativo (que fica atrás dos olhos, na base do cérebro) que estão as células especializadas que decodificam os aromas e os interpretam, e na via retronasal, que permite que possamos perceber uma parte do aroma depois de engolirmos a bebida. Aliás, é precisamente a via retronasal que fica travada quando estamos resfriados, mesmo que o nariz não seja afetado, impedindo que a gente sinta o gosto dos alimentos.
Mas o mais importante dessa fisiologia dos aromas é uma parte ainda mais sutil: a nossa memória olfativa. A ciência prova que somos capazes de reconhecer mais de 500 aromas diferentes, em variados níveis de intensidade, mas que nem sempre somos capazes de dar nomes à eles. Isso se explica pelo fato de que mesmo sabendo que há diferença de aromas entre uma maçã verde e uma maçã seca, não somos capazes de descrever as diferenças desses cheiros com facilidade e por vezes, mesmo sabendo exatamente como cheira uma maçã, não somos capazes - se questionados de repente - de afirmar categoricamente que aquele aroma é de maçã.
A memória olfativa precisa ser treinada e estimulada. Ela responde bem à isso. Por exemplo, é bem provável que nos lembremos com certa facilidade do cheiro da caixa nova de lápis de cor do período escolar infantil. É um cheiro muito específico, de madeira e grafite (que também existe em alguns vinhos) e que está impregnado em nosso cérebro por conta de uma lembrança feliz repetida várias vezes. Da mesma forma que os aromas dos alimentos das casas de familiares queridos, ou os perfumes das pessoas que gostamos (ou não gostamos, pois a memória negativa também é muito forte). Todos esse aromas estão ligados à memória emocional, que conecta diretamente uma porção de respostas cerebrais, sejam elas boas ou não, ligadas aos lugares, às pessoas e às coisas.
O enólogo André Peres Jr. que trabalha na Vinícola Aurora, foi entrevistado logo após sair de um treinamento em análise sensorial desenvolvido por uma empresa brasileira que sintetiza aromas. Ainda com a cabeça e o nariz tentando processar os diversos níveis de aromas de simples amendoins (naturais, cobertos, doces e salgados), ele afirmou que esses exercícios são fundamentais para sua profissão, onde muitas vezes os enólogos precisam aprender a encontrar aromas defeituosos nos vinhos, enquanto algo ainda pode ser feito por eles: “Mas no caso do apreciador, o conhecimento dos aromas é importante para que se aproveite mais o vinho, para que se entenda mais suas sutilezas, que são uma parte essencial da bebida”, explica André.
Uma visita ao mercado municipal, de nariz e olhos atentos, equivale a uma aula de preparação para a análise sensorial
O enólogo também afirma que reconhecer aromas é muito importante na hora da harmonização, tanto para os sommeliers quanto para quem está se aventurando caseiramente em combinações de alimentos e bebidas. “Alguns aromas se casam bem, outros não e isso sabemos instintivamente com os alimentos, mas quando queremos estudar mais, devemos prestar mais atenção ao que está à nossa volta. Se vamos comer fora, vamos prestar atenção nos temperos usados numa comida que não é a de casa, se vamos fazer compras numa feira, vamos cheirar as frutas e se formos servidos de uma bebida, qualquer que seja ela, vamos dar atenção aos seus aromas antes de simplesmente engolí-la”, sugere.
Alguns exercícios caseiros podem ajudar (e muito) na compreensão dos aromas, e quase tudo está ao alcance das mãos: temperos (pimentas secas e frescas, vinagre de vinho e de álcool), ervas frescas e secas, frutas em suas variadas cores (tropicais como maracujá, manga ou abacaxi, vermelhas como morangos, amoras e framboesas, brancas como melão, nectarina, pera ou banana), castanhas tostadas ou não, chocolate ao leite e chocolate meio amargo, grãos de café e até mesmo fumo, que associamos comumente ao cigarro, mas que nos vinhos se manifesta mais como o fumo de corda.
Um passeio a um mercado municipal pode ser uma aula perfeita de aromas os mais variados, seja da salinidade dos peixes frescos, do poder pungente das carnes vermelhas, do adocicado das frutas, do leitoso dos queijos e de algumas massas, do fumo e dos grãos torrados. É tudo uma questão de prestar atenção no que nos cerca e de saber que essa gama de aromas pode estar presente nas taças que provamos.
Esse exercício sensorial fica completo com uma degustação muito simples: dois vinhos brancos da mesma uva e país, um com passagem por madeira e outro sem (ou um vinho branco aromático como um Sauvignon Blanc e um não aromático como um Chardonnay) e dois vinhos tintos, um jovem e frutado (como um Gamay) e mais envelhecido e complexo (como um Cabernet amadeirado). Neste caso não é necessário degustar às cegas, mas sim buscando perceber as sutilezas dos aromas em cada taça e em cada estilo. “É preciso lembrar o óbvio: que o vinho é feito de uma fruta, a uva, e que se espera que ele tenha aromas frutados, mas que não são tão ‘de uva’ como se vê num suco ou numa geléia, pois essas uvas são diferenciadas e passaram por vários processos químicos com a fermentação e o amadurecimento e por isso seus aromas se modificaram”, esclarece o enólogo André.
Com os vinhos nas taças, o ideal é cheirar primeiro a superfície parada do líquido, percebendo quais os aromas do vinho em repouso. Depois agitar a taça e cheirar novamente, para perceber como a mistura do ar no líquido é capaz de modificá-lo, e por fim, agitar a taça novamente e cobrí-la com a mão por alguns segundos, inalando em seguida, percebendo assim a concentração de alguns aromas. É importante lembrar que essa inalação não deve ser muito profunda, senão tudo o que perceberemos será o álcool e que vale também ir buscar os aromas nas taças passados alguns minutos, e com a mudança da temperatura que ocorre no líquido.
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Esses exercícios, que são simples e prazeirosos, podem ser combinados com uma cesta de pães, alguns queijos, algumas frutas e castanhas, que serão capazes de harmonizar bem com alguns dos vinhos e não tão bem com outros, transformando o exercício sensorial olfativo também numa excelente atividade para treinar o paladar.