América, África e Austrália têm vinhos que podem em muitas safras competir – e até vencer – os grandes vinhos europeus
por André De Fraia
Que preciosidades você guarda (ou sonha guardar) em sua adega? Certamente alguns dos grandes rótulos mundiais, com nomes consagrados.
Da França, por exemplo, há uma lista quase infindável, não? Petrus, Romanée-Conti, Beaucastel... Da Itália, também é possível elencar vários, como Sassicaia, Solaia, Biondi Santi, Gaia etc. Da Espanha, Vega-Sicilia, Pingus, Mas La Plana etc. De Portugal, Barca Velha, Pera Manca, Quinta do Noval etc.
Mas sua adega teria só o que chamamos de “Velho Mundo”? Que tal abrir espaço para alguns clássicos de fora da Europa? Sim, há muito os grandes vinhos não se resumem apenas aos produtores desses tradicionais países europeus. O Novo Mundo (que aqui compreendemos por América, África e Oceania) possui nomes que, apesar de muitas vezes não terem história tão longínqua, têm status de ícones.
Alguns, aliás, já nasceram com “estirpe”, frutos de parcerias entre produtores do Novo e Velho Mundos. Mas todos trilharam seus caminhos entre a crítica internacional e merecem o reconhecimento.
Em 1996, a casa bordalesa Baron Phillipe de Rothschild – detentora do lendário Château Mouton Rothschild –, decidiu voltar seus olhos para uma das promissoras potências do Novo Mundo do vinho e, junto com a chilena Concha y Toro, criou Almaviva.
Desde o início um grande vinho.
A joint venture selecionou os melhores terrenos do Maipo, mais especificamente em Puente Alto, para a fonte das uvas.
A expertise francesa, atualmente pelas mãos do enólogo Michel Friou, ajudou a criar o blend ideal, com predominância da Cabernet Sauvignon, completada com Cabernet Franc, Merlot, Carménère e Petit Verdot (cujas percentagens mudam ano a ano).
Quando o intrépido barão Philippe de Rothschild, sim ele de novo!, decidiu que deveria investir na produção de vinhos fora de Bordeaux, suas primeiras incursões obviamente foram na Califórnia, pois, em 1976, o Julgamento de Paris (degustação que contrapôs ícones franceses com vinhos norte-americanos até então desconhecidos) certamente lhe mostrou onde iniciar as buscas.
Na época, encontrou-se com Robert Mondavi, o maior nome local e em 1979, eles selaram o acordo que criou Opus One.
Os vinhedos de Opus One ficam na parte oeste da denominação de Oakville.
Duas parcelas, totalizando 70 hectares, estão dentro do famoso To Kalon Vineyard, e cerca de 28 hectares estão nas parcelas Ballestra e River, que circundam a vinícola.
Diz a lenda que, para criar o blend, Lucien Sionneau, enólogo do Mouton Rothschild, e Tim Mondavi, filho de Robert e enólogo-chefe da Mondavi, precisaram se trancar em uma sala até chegarem a um consenso.
A mistura, obviamente, tem predominância de Cabernet Sauvignon e é completada com Petit Verdot, Merlot, Cabernet Franc e Malbec em quantidades variáveis safra a safra.
Se Almaviva, a parceria entre os Rothschild e os donos da Concha y Toro já nasceu em meio à nobreza, outro vinho da empresa chilena, Don Melchor, produzido em memória de seu fundador, galgou seu espaço e é reconhecido com um dos grandes do Chile e do mundo.
Don Melchor Concha y Toro foi um dos pioneiros da indústria vitivinícola chilena. Em 1883, ele importou vinhas francesas para a região de Pirque.
Um século depois, sua empresa se transformou em uma das maiores do mundo no segmento.
O rótulo que leva seu nome também nasceu mais de 100 anos depois de ele ter fundado a vinícola em 1987.
Apesar de ter nascido 100% Cabernet Sauvignon do magnífico terroir de Puente Alto, ele pode receber pequenas parcelas de Cabernet Franc, Merlot e Petit Verdot, por exemplo, sempre sob a supervisão do prestigiado enólogo Enrique Tirado, encarregado de Don Melchor desde 1997.
Oakville parece ser um lugarejo mágico na Califórnia. Dali surgem alguns dos vinhos mais cultuados dos Estados Unidos. Entre eles Opus One e Screaming Eagle.
A famosa “Águia gritando” é um fenômeno relativamente recente, cuja fama se concretizou nos anos 1990. A história começou em 1986, quando Jean Phillips, então corretora imobiliária, comprou uma propriedade com cerca de 20 hectares. Até 1992, ela vendia suas uvas para as vinícolas ao redor, menos as Cabernet Sauvignon de cerca de 80 vinhas, com as quais ela fazia um vinho próprio em garrafas plásticas.
Naquele ano, ela levou amostras de seu vinho para a equipe da vinícola de Robert Mondavi, perto dali.
Com o aval, passou a engarrafar.
Acredita-se que a produção anual gire em torno de apenas 5 mil garrafas e, para adquirir uma delas, é preciso entrar em uma lista de compradores gerida pela vinícola. Há boatos de que há uma espera de mais de 5 mil nomes de potenciais compradores (a lista não é divulgada).
O mito em torno do vinho é tanto que a vinícola não aceita visitas e sequer deixa os visitantes fotografarem para que outros não reconheçam o vinhedo e resolvam parar por curiosidade.
Em 1951, após voltar de uma viagem à Europa, o enólogo Max Schubert, da vinícola australiana Penfolds, decidiu experimentar novas formas de produzir, selecionando o que acreditou ser o melhor Shiraz que tinha em mãos.
Nascia assim o primeiro Penfolds Grange Hermitage.
Este último termo se refere à região de Hermitage, no vale do Rhône, França, e acabaria retirado do rótulo em 1990 devido às leis europeias de proteção das denominações de origem.
A primeira safra comercialmente lançada foi a de 1952. Em 1957, contudo, a empresa mandou que o projeto fosse encerrado, pois um grupo da diretoria não gostou do vinho.
Mesmo assim, durante três anos, até 1959, Schubert continuou produzindo o vinho secretamente (essas safras ficaram conhecidas como “vintages ocultos”), retomando em 1960 já com autorização para seguir adiante.
Sua consagração viria em 1995, quando a revista Wine Spectator elegeu a safra 1990 como “vinho do ano”. Anos depois, a mesma revista selecionou a safra 1955 como um dos 12 vinhos mais representativos do século 20.
Diferentemente de outros ícones que geralmente são feitos com uvas de um terroir específico, o Grange é um blend de uvas Shiraz (predominantemente, às vezes com alguns acréscimos de Cabernet Sauvignon) de diferentes localidades na Austrália. Ou seja, um vinho que enaltece a técnica do enólogo em criar algo espetacular, atestando a genialidade de Schubert e seus sucessores.
Não é à toa que Nicolas Catena Zapata é uma referência no vinho argentino.
Desde muito cedo, ele investiu em pesquisa para alcançar patamares cada vez mais elevados.
Entre seus mais prestigiados rótulos, certamente o Catena Zapata Estiba Reservada se destaca.
Este é um projeto que começou no início dos anos 1980 com a seleção dos melhores vinhedos de montanha (especialmente de Agrelo, a 1000 metros de altitude no sopé do Andes) e os clones mais adequados, principalmente de Cabernet Sauvignon.
Com o tempo, a empresa identificou os lotes de melhor qualidade dentro dos vinhedos da família. O cultivo manual e o cuidado com esses lotes permitiram identificar as plantas que produzem os melhores frutos de forma consistente.
Estas plantas estão marcadas no vinhedo com uma fita vermelha, o que indica os cuidados especiais para com elas.
As chamadas “plantas Zapata” são colhidas separadamente, em épocas diferentes, e dão origem a este vinho feito majoritariamente com Cabernet Sauvignon, mas que pode receber acréscimos de Cabernet Franc e outras castas dependendo do ano.
Aliás, pensado para ter um padrão de qualidade extremamente elevado, o Estiba Reservada é lançado apenas nas safras que Catena acredita serem excepcionais. Com produção pequena, ele tampouco vai para muitos mercados, ficando restrito quase que à Argentina, mas com comercialização também no Brasil e alguns outros poucos países.
Muitos lembram da vinícola Stag’s Leap por seu vinho ter vencido, em 1976, na categoria tintos, o Julgamento de Paris.
Na época, o ganhador foi o que hoje é chamado de SLV (Stag’s Leap Vineyard), rótulo cuja primeira safra foi em 1972. Detalhes: o vinho provado em 1976 foi o da safra 1973 (ou seja, apenas a segunda!) e a vinícola havia sido fundada em 1970!
Enfim, o Julgamento de Paris catapultou Stag’s Leap. E não se pode dizer que sem razão.
Em 1974, por exemplo, a empresa chamou o lendário enólogo Andre Tchelistcheff para uma consultoria. Após provar os muitos vinhos da safra, ele decidiu que um lote, que estava em um grande barril de madeira de número 23, era tão bom e distinto que deveria ser engarrafado separadamente. Assim nasceu o maior ícone da vinícola do Napa Valley, o Cask 23.
Hoje, o vinho é uma mistura das melhores uvas (100% Cabernet Sauvignon) de lotes dos vinhedos SLV e FAY, uma propriedade vizinha que foi adquirida em 1986.
Eduardo Chadwick é um visionário, um grande empreendedor e, com sua ousadia, foi um desbravador.
Em 2004, ele promoveu uma degustação às cegas comparando alguns ícones do Velho Mundo como Margaux, Lafite, Latour, Solaia, Sassicaia e Tignanello, a maioria da consagrada safra 2000, com seus próprios vinhos.
O evento ficou conhecido como Cata de Berlim e, para surpresa geral, seu Viñedo Chadwick 2000 foi o vencedor.
Esse rótulo havia sido criado na safra 1999 em homenagem ao pai de Eduardo, Alfonso Chadwick Errázuriz. A história por trás do surgimento desse vinho, contudo, remonta ao começo dos anos 1990, quando Don Alfonso, já bastante velho, autorizou o filho a plantar vinhas de Cabernet Sauvignon sobre o campo de polo da propriedade em Puente Alto.
Ele foi um dos maiores jogadores desse esporte na história chilena e, obviamente, tinha um enorme apreço pelo campo.
Sim, é um projeto recente, mas não há como negar que já ganhou status de ícone.
A Bodega Garzón é um empreendimento lançado em 2006 por Alejandro Bulgheroni, o milionário argentino, que resolveu investir em uma propriedade de 2.200 hectares em Maldonado, Uruguai.
Ali, com assessoria de nomes como Alberto Antonini e Christian Wylie passou a produzir grandes vinhos em pouco tempo.
E foi na safra 2015 que a Garzón decidiu dar sua maior cartada, lançando o ícone Balasto.
O nome deriva de um tipo particular de solo de granito meteorizado, com boa drenagem, que é encontrado ali e dá origem a alguns dos melhores lotes da propriedade.
O primeiro blend foi composto por quatro variedades: 45% Tannat, 25% Cabernet Franc, 20% Petit Verdot, 10% Marselan.
Em 2017, sua terceira safra, a Petit Verdot deu lugar à Merlot na mistura.
Na época do lançamento da vinícola, Bulgheroni chegou a afirmar para seus comandados: “Tenho mais de 60 anos, e não tenho muito tempo de vida para gastar com experimentos. Estou disposto a tomar riscos, afinal esta é minha vida”.
Assim como faz no mundo empresarial, ele tem apostado alto e colhido frutos.
Depois de ter estudado na Universidade da Califórnia em Davis (UC Davis), Christian Moueix, filho do lendário Jean-Pierre Moueix retornou à França para gerir as propriedades da família, entre elas Petrus, La Fleur-Petrus e Trotanoy.
Todavia, em 1982, ele decidiu formar uma parceria para produzir um vinho no histórico Napanook Vineyard em Yountville.
Nasceu assim, Dominus.
Ele adaptou as técnicas francesas às condições californianas, defendendo a agricultura não-irrigada, uma abordagem minimalista na vinificação.
O Dominus 1983 foi o primeiro vintage produzido, contudo, como ele se mostrou um vinho em que os taninos demoraram para serem domados, a safra de 1984 acabou sendo a primeira a ser lançada no mercado. A safra 1983 só foi lançada em fevereiro de 1989.
O vinho foi composto por 80% de Cabernet Sauvignon e 20% de Merlot.
Desde 2003, no entanto, a Merlot nunca mais esteve presente no blend, que tem sido composto de Cabernet Sauvignon, majoritariamente, com pequenas porcentagens de Petit Verdot e Cabernet Franc.
A vinícola, uma obra de arte dos arquitetos suíços, Jacques Herzog e Pierre de Meuron, foi concluída em 1997 e recebeu diversos prêmios de design.
A história desse ícone argentino está ligada à sua “matriz” na Europa.
O grupo LVMH é dono de inúmeras vinícolas, entre elas, o mítico Château Cheval Blanc, em Bordeaux.
Nos anos 1990, o grupo criou Terrazas de los Andes, em Mendoza, Argentina. Em viagem às propriedades argentina, Pierre Lurton, diretor de Cheval Blanc, vislumbrou a possibilidade de criar um vinho que resgatasse a memória dos antigos “claretes”, que continham Malbec, uma variedade que dizimada em Bordeaux com a crise da filoxera em meados do século 19 e posteriormente deixada de lado.
Lurton ficou impressionado principalmente com o vinhedo de Malbec de Las Compuertas, plantado em 1929. Dessa forma, em 1999, o projeto Cheval des Andes se iniciou.
O vinho, cuja primeira safra ocorreu em 2001, é um blend de várias parcelas de Malbec, mas leva também toques de Cabernet Sauvignon e Petit Verdot, mantendo a lógica do savoir-faire bordalês.
Os históricos Vin de Constance sul-africanos tiveram o auge de sua fama nos séculos 18 e 19.
Esse vinho doce esteve na mesa de reis, imperadores e primeiros-ministros, sendo um dos favoritos de nomes como Napoleão Bonaparte, Frederico, o Grande, e Otto von Bismarck, por exemplo.
Ele foi aclamado também na literatura, sendo citado por Charles Dickens, Jane Austen e Baudelaire. Este último chegou a comparar o Vin de Constance com uma espécie de elixir de amor.
Na época, um dos principais produtores era a vinícola Klein Constantia, fundada em 1685 por Simon van der Stel.
Durante os séculos, a propriedade passou por diversas transformações e períodos obscuros, assim como o vinho, que deixou de ser produzido depois de 1870, após a devastação da filoxera na África do Sul.
O Vin de Constante de Klein Constantia só voltou a ser produzido nos anos 1980 utilizando principalmente a casta francesa Muscat de Frontignan.
Nas palavras de Eduardo Chadwick: “O primeiro Seña lançado no mercado internacional foi da colheita 1995. Assim, foi a primeira joint venture internacional com o objetivo de criar um grande vinho no Chile. Isso se deu em sociedade com Robert Mondavi. O fato de ele vir ao Chile fazer um vinho com Errázuriz foi um grande acontecimento mundial. Seña foi o precursor, e logo vieram Almaviva, Clos Apalta... Assim se gerou uma competição amistosa para produzir o melhor vinho do Chile”.
Hoje, já não existe mais a parceria com Mondavi, e Seña é de propriedade exclusiva do grupo Errázuriz, que produz ainda o ícone Viñedo Chadwick, além de outros tantos grandes vinhos.
São cerca de 40 hectares no Vale do Aconcágua, de onde vêm a fruta para este vinho célebre.
A variedade predominante é a Cabernet Sauvignon, mas a Carménère costuma ter papel importante no blend, que ainda pode levar Malbec, Merlot, Cabernet Franc e Petit Verdot de vinhedos geridos de forma biodinâmica.
Assim como o Viñedo Chadwick, Seña foi outro dos rótulos que Eduardo Chadwick promoveu mundialmente com sua “Cata de Berlim”, tendo ficado em segundo lugar na preferência dos degustadores no evento realizado em 2004, “perdendo” apenas para o Viñedo Chadwick.
A história da Ridge Vineyards começou em 1885, quando Osea Perrone, um médico de São Francisco, comprou cerca de 70 hectares perto do topo de Monte Bello Ridge, nas montanhas de Santa Cruz, Califórnia.
Ele escalou as encostas, plantou vinhas e construiu a vinícola Monte Bello, produzindo a primeira safra com esse nome em 1892.
Durante a Lei Seca, o vinhedo não foi totalmente mantido; algumas vinhas sobreviveram até o final dos anos 30, mas, na década de 1940 foram efetivamente abandonadas. Três hectares de Cabernet Sauvignon foram replantados em 1949 e essa foi a fonte do primeiro Ridge Monte Bello em 1962.
Monte Bello costuma ser chamado de “Premier Grand Cru da América”, sendo uma mistura clássica de Bordeaux, na qual predomina a Cabernet Sauvignon, com acréscimos de Merlot, Petit Verdot ou Cabernet Franc em diferentes proporções dependendo da safra.
Ele foi um dos vinhos selecionados pelo crítico Steven Spurrier para participar dos famoso Julgamento de Paris (evento no qual Monte Bello ficou em quinto lugar em “competição” com rótulos clássicos franceses).