Mais de 100 mil

La Tour d'Argent: a adega das 400 mil garrafas

As curiosidades da adega do tradicionalíssimo La Tour d'Argent, com suas mais de 400 mil garrafas

por Arnaldo Grizzo

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La Tour d'Argent tem dois andares de adega subterrânea de vinhos de cerca de 15 mil marcas francesas

Escuridão e frio. Passagens estreitas. Cadeados e correntes. Em um cenário que mais lembra uma masmorra, dormem mais de 400 mil garrafas de vinho, essencialmente de marcas francesas. Os poucos "estrangeiros" lá são vinhos do Porto. Essa infinidade de garrafas está espalhada por dois andares de "calabouço" no subterrâneo do mais tradicional restaurante francês, o emblemático La Tour d'Argent, que fica próximo da catedral de Notre Dame, nas margens do Sena.

Diz-se que "A Torre de Prata" nasceu ainda no século XVI, mais precisamente em 1582, ou seja, não havia nem 100 anos que o genovês Cristóvão Colombo tinha desembarcado em terras americanas. Na época, o albergue foi aberto por ordem do rei Henrique III, que lá teria conhecido um utensílio hoje muito comum, o garfo. Portanto, nesse período a corte francesa parou de se banquetear com a mão. Assim, a riquíssima história do local ainda conta com a presença de inúmeros monarcas e personalidades, como Richelieu, Napoleão etc, como também atesta diversas "reconstruções", até se tornar o que é hoje.

Em meados do século XIX, Frédéric Delair, então proprietário do restaurante, famoso por seu pato "ao sangue", chamado de caneton Tour d'Argent (que custa 140 euros hoje), em uma jogada de marketing, passou a numerá-lo. Ele alcança a impressionante cifra de 1.122.173 servidos até o dia 5 de junho de 2016. Foi pouco antes da I Guerra Mundial que a família Terrail passou a comandar o restaurante. André Terrail se casou com a filha de Claudius Brudel, então dono do prestigiado Café Anglais, e assim La Tour d'Argent herdou tudo o que havia de mais precioso na cozinha francesa na época, assim como os vinhos raros do Café Anglais. Hoje, quem toma conta desse templo enogastronômico francês é o neto de Terrail, filho do empreendedor Claude, também chamado André.

Uma instituição francesa

O La Tour d'Argent, mesmo tendo perdido duas estrelas do guia Michelin (tem apenas uma), ainda hoje mantém sua tradição culinária e um serviço formalíssimo que costuma deixar aturdidos seus frequentadores. Um senhor calvo, com uma barriga imponente e sorriso fácil costuma "desfilar" pelo salão durante almoço e jantar cumprimentando os clientes, tentando assegurar que eles estejam se deleitando com a experiência de lá fazerem suas refeições.

Ironicamente, nesse templo devotado não somente à culinária francesa, mas também aos seus vinhos, o chef-sommelier é um inglês. David Ridgway trabalha lá há mais de 30 anos e, junto com outros cinco sommeliers e cinco assistentes, coordena a gigantesca cave do restaurante. Ele e sua equipe vendem aproximadamente 18 mil garrafas de vinho por ano. "Vendíamos cerca de 28 mil antes. Agora, com a legislação trabalhista, decidimos fechar mais um dia por semana (domingo), portanto, vendemos menos", diz resignado o inglês em seu escritório "escondido" em meio à adega, decorado com as tampas de madeira de caixas de clássicos vinhos franceses. "Tempos atrás tínhamos mais garrafas, mas decidimos vender em leilão. Isso ajudou a fazer caixa a tempo de comprar en primeur a safra 2009 de Bordeaux", lembra, lamentando o fato de Bordeaux ter se tornado tão caro com o tempo.

"Em 1982, cheguei a comprar 20 caixas de cada Premier Cru. Agora geralmente compro entre seis e 24 garrafas de cada. Poderíamos estar vendendo 12 garrafas de Premier Cru por noite, mas agora é uma por noite ou a cada duas noites", conta, dando mais valor hoje aos borgonheses: "Estou saindo um pouco de Bordeaux. Indo para a Borgonha. Lá, você encontra um pequeno produtor que faz três barricas de Chambertin e vende por 100 euros a garrafa. Isso é compreensível. Mas, comprar um Lafite, que faz 200 mil garrafas, por três vezes esse preço é quase incompreensível".

"Um Latour ou um Chambertin jovens são adoráveis, mas não muito melhores do que um vinho mais simples jovem. A complexidade vem com a idade"

Vinhos jovens x vinhos velhos

Com mais de 400 mil garrafas na adega, a carta do La Tour d'Argent tem mais de 400 páginas de vinhos de cerca de 15 mil marcas diferentes, quase todas francesas (as exceções, como dito antes, são Porto). "Vendendo 18 mil por ano, isso significa que temos cerca de 20 anos de estoque, o que é demais se pensamos que hoje as pessoas querem beber só vinhos jovens", lamenta, mas completa: "Posso entender isso, pois quando as pessoas provam vinhos velhos, provam vinhos velhos ruins. Quando se prova os bons, você percebe o quão maravilhosos eles são".

Ridgway acredita que boa parte dos terroirs franceses precisa de tempo para se expressar. "Um Latour ou um Chambertin jovens são adoráveis, mas não muito melhores do que um vinho mais simples jovem. A complexidade vem com a idade. Então, se tentarmos fazer vinhos mais jovens na França, acho que o Novo Mundo tem mais sol para fazer vinhos melhores do que nós", sorri e acrescenta: "As pessoas não querem mais pensar, apenas querem satisfazer seus prazeres. Por isso, os rótulos do Novo Mundo têm tanto sucesso, pois são muito imediatos".

Para o sommelier, os vinhos são como pessoas, "são muito charmosos quando jovens, então passam por aquela fase de adolescência ruim e, por fim, tornam-se mais interessantes". Segundo o inglês, muitas pessoas bebem o vinho no período ruim, entre o muito jovem e o maduro, e não esperam que o vinho volte a se mostrar.

Como uma de suas funções como sommelier é sugerir a bebida em momento ideal, Ridgway defende os vinhos velhos com um argumento importante: o preço. "Paradoxalmente, vinhos mais velhos são mais baratos do que os novos. Muitos dos vinhos velhos estão, na verdade, custando a metade do preço dos jovens. É mais fácil dizer para as pessoas beberem os mais velhos, pois eles podem ver que não há um interesse comercial da nossa parte - já que esses vinhos são melhores para provar agora", garante.

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SUGESTÃO DE HARMONIZAÇÃO PARA O CANETON

"O pato de La Tour d'Argent é feito com a redução do sangue e do fígado, e Cognac, e precisa de algo não muito tânico. Falando genericamente, está mais para um Borgonha, Côte de Nuits, Chambertin ou algo assim. Pode ser um Bordeaux, mas melhor se for um maduro, com os taninos suaves de safras mais quentes, como 1982 ou 1990. O que o vinho precisa é ter certa complexidade e suavidade, não ser muito frutado, pois o pato tem mais sabores selvagens", aponta David Ridgway.

Vinho x comida

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As 22 mesas do La Tour d'Argent têm uma vista maravilhosa da catedral de Notre Dame

La Tour d'Argent é reconhecidamente um templo da gastronomia, mas também se vangloria de atrair muito de seu público devido ao vinho e Ridgway é enfático em dizer que "na França, a comida é subsidiada pelas vendas de vinho". Segundo ele, "a comida pode parecer cara, mas é subsidiada pelas vendas de vinho. Se perdemos as vendas de vinho, não poderemos vender a comida".

O sommelier explica que, em uma refeição de gasto médio (o menu do almoço custa 75 euros por cabeça e o do jantar 200 - à noite também há opções a la carte), cerca de 40% do valor vem do vinho e 60% da comida. A matemática parece estranha, mas ele explica: "Quando a conta é cara, é por causa do vinho, não devido à comida. Você não pode ir muito além na comida, não pode comer seis patos. Mas pode ter uma garrafa bem cara". Entre os rótulos mais caros do restaurante estão os Petrus de 1982 e os Romanée-Conti de 1999, que valem cerca de 20 mil euros cada. Há ainda algumas raridades como magnuns de Latour 1945 que saem por aproximadamente 60 mil euros. "Mas tenho uma ou duas ainda, então quando terminar, terminou".

Quando perguntado se há contas astronômicas, Ridgway sente-se constrangido e diz: "Tivemos muita gente gastando muito. Mas não é algo de que temos muito orgulho. Algumas vezes, você ouve os restaurantes dizerem que algumas pessoas gastaram 100 mil euros. Nós poderíamos ir muito além disso. Mas não há orgulho nisso. Não significa nada. Não significa que somos mais espertos. Não é melhor para o restaurante, talvez seja melhor para a economia da França. Prefiro que as pessoas aproveitem a refeição. Vinhos caros são caros porque são raros. Vendemos, mas não necessariamente temos outra garrafa, então isso não ajuda. Se alguém quer gastar 20 mil numa garrafa, boa sorte, fico feliz, mas não necessariamente posso fazer isso duas vezes, pois acabou".

"Quando a conta é cara, é por causa do vinho, não devido à comida. Você não pode ir muito além na comida, não pode comer seis patos. Mas pode ter uma garrafa bem cara"

Custo da adega e garantia de origem

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As questões envolvendo dinheiro realmente não agradam o inglês que se criou nesse ambiente francês de discrição, e falar do quanto vale sua adega milionária parece um sacrifício. "Não gostamos de falar sobre dinheiro, não é algo com o que na França somos muito abertos". Ainda assim, ele faz um cálculo por alto, mas antes questiona: "Você quer pensar no preço que esses vinhos podem alcançar num leilão, no preço que vendemos no restaurante ou no que compramos as garrafas?"

No de compra. "Raramente compramos vinhos abaixo de 40 euros a garrafa. Uma média seria de 50 euros. Mas compramos vinhos de mais de 1000 também. Então, 400 mil vezes 50; isso dá muito dinheiro, 20 milhões de euros. Mas esse é o preço que nos custou para comprar. Se vendermos com a imagem de La Tour d'Argent, esse valor pode dobrar".

Quase toda semana, Ridgway vai às compras. "Atualmente, as pessoas começam a entender que, se quiserem comprar bons vinhos, precisam saber de onde eles vêm, especialmente com tanta fraude. Aqui, os vinhos sempre vêm diretamente do produtor. Nunca compramos de terceiros, nem de leilões".

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Em uma avaliação por alto, pensando apenas na média do valor de compra dos vinhos do La Tour d'Argent, que é de 50 euros, estima-se que a adega valha, no mínimo, 20 milhões de euros

A tarefa de gerenciar essa quantidade astronômica de garrafas pode amedrontar muita gente, mas ele parece tirar de letra: "Não é necessariamente o volume que importa. É verdade que todo dia temos uma briga com a contabilidade, pois eles não entendem porque precisamos ter tantos vinhos. E todo dia temos que assegurar que o volume de negócios funcione bem. É por isso que quando há uma mesa vazia, fico chateado, pois é uma garrafa de vinho que não pude vender. Precisamos vender, não porque precisamos do dinheiro, pois já pagamos pelo vinho, mas precisamos dar andamento às garrafas, não porque os vinhos estão ficando velhos, pois uma hora eles vão achar alguém que os aprecie".

"Atualmente, as pessoas começam a entender que, se quiserem comprar bons vinhos, precisam saber de onde eles vêm, especialmente com tanta fraude. Aqui, os vinhos sempre vêm diretamente do produtor"

Em um restaurante tão tradicional com 22 mesas, com uma vista fantástica de Paris, as chances de um lugar ficar vago é raro. "Somos felizardos de estar completamente reservados para almoço e jantar por dois meses, que é limite de tempo de nossas reservas", conta o sommelier. E se a preocupação não é o envelhecimento do estoque, qual seria? "Às vezes, é uma preocupação achar as garrafas, pois as movemos e, algumas vezes, não as encontramos. Mas elas nunca ficarão perdidas para sempre. Esta manhã perdi alguns Riesling...", sorri, lembrando que todos os vãos dos corredores escuros estão catalogados em seu sistema para que as garrafas sempre cheguem rapidamente à mesa do cliente.

São 12h, o La Tour d'Argent está abrindo para receber os clientes para o almoço. Está na hora de Ridgway ir para o salão, verificar se tudo está correndo bem e se as pessoas vão pedir vinho para acompanhar a comida. Sua expertise está sendo requisitada e tudo o que ele quer, enfatiza, "é o cliente feliz".

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HARMONIZAÇÃO

O cardápio do La Tour d'Argent segue os clássicos da cozinha francesa e muda muito pouco. "Mudamos nas estações, mas os pratos básicos permanecem os mesmos. As guarnições mudam", conta David Ridgway. Dessa forma, pensar em harmonizações para as receitas parece ser fácil. Caso você não tenha 400 mil opções na carta...

O sommelier diz que é muito normal em um restaurante que você tenha quatro pessoas na mesa e as quatro queiram quatro pratos diferentes. "Acho legal ter um ou dois vinhos, pois isso traz todo mundo junto. Mas, se todos têm uma taça diferente e um prato diferente, não seria melhor sentar num bar? Pois assim nem é preciso conversar um com o outro. Quando se tem quatro pratos diferentes e um vinho, você pode falar sobre isso. O vinho traz todos juntos. Com tantos vinhos na carta, tentamos algo que possa combinar com os quatro pratos. Nossos pratos não são tão diferentes na base, então é fácil achar um par", comenta.

Ainda assim, o que fazer quando alguém pede algo esdrúxulo? "É errado para mim, mas não para eles. O importante é que estejam bebendo. É uma coisa que sempre irrita o sommelier, mas é compreensível. 'Fiz isso em casa e agora quero o mesmo'. Porque? É bobagem. Não é o mesmo vinho e nem a mesma garrafa. Mas as pessoas gostam de ir para o que conhecem. Não gostam de sair da zona de conforto. Assim, eles, pelo menos, sabem que não ficarão desapontados", atesta e acrescenta: "O desejo de beber vinho tinto tem crescido, infelizmente, pois acho que muitos pratos vão muito bem com brancos. As pessoas sempre dizem que você não pode beber vinho tinto com peixe, o que é verdade. Mas podese beber vinho branco com muitas carnes, como vitela, frango, porco. No entanto, as pessoas agora querem vinho tinto, algumas até pedem tinto como aperitivo, o que é estranho. Mas isso é uma questão de gosto".

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