Curiosidades

Massandra e a incrível história das “cópias soviéticas” com vinhos da Crimeia

Os segredos da vitivinicultura ucraniana, de blends improváveis e imitações de clássicos do mundo

por Lucas Bertolo

Catálogo da Massandra tinha imitações de Madeira até Tokaji

A história moderna da vitivinicultura na Crimeia tem início nos esforços do príncipe Mikhail Vorontosov, governador-geral da Nova Rússia e da Bessarábia (atualmente territórios do sul da Ucrânia, Crimeia e Moldávia), de introduzir na península uma indústria do vinho. Entre 1823 e 1828, Vorontosov, considerado um dos heróis das guerras napoleônicas, trouxe da França as primeiras vinhas, construiu as primeiras caves e fundou a vinícola Magarach e o Instituto Magarach de Vinhas e Vinho, pioneiro em pesquisa enológica. Já naquela época, inúmeros testes foram realizados para adaptar diferentes castas na região e tentou-se cultivar as grandes variedades tintas francesas nos primeiros anos, sem sucesso.

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Magarach, então, mudou de direção e passou a produzir novas castas, mais adaptadas ao terroir da Crimeia, como a Magarach Ruby, um cruzamento improvável, no entanto bem-sucedido, entre as potentes Cabernet Sauvignon e Saperavi; a Bastardo Magarachsky, cruzamento da portuguesa Bastardo com a georgiana Saperavi; e a Riesling Magaracha, união entre a célebre Riesling e a híbrida Roucaneuf, variedade francesa resistente e pouco conhecida.

Magarach, no século seguinte, tornou-se o maior instituto de pesquisa sobre vitivinicultura de toda a União Soviética, e ainda hoje é referência para a crescente indústria do vinho na região. O vinho russo mais antigo ainda existente é um Moscatel Rosé Magarach, feito em 1836 na sub-região onde, décadas depois, seria fundada a vinícola Massandra.

Massandra

Um palácio à beira do Mar Negro, construído no fim do século XIX por Semyon Vorontosov, filho de Mikhail Vorontosov, conta tanto a história das revoluções, das guerras e das crises políticas e econômicas que assolaram a península da Crimeia no tempestuoso século XX, como a história do desenvolvimento de uma vinícola sui generis.

Adquirido em 1889 pelo czar Alexandre III, o palácio de Massandra, incrustado entre mar e montanha na província de Yalta, testemunhou os anos derradeiros da dinastia Romanov. Ele foi estatizado após a revolução bolchevique e serviu primeiro como sanatório para tuberculosos, depois como residência de verão (dacha) de Josef Stalin, sendo rebatizado à época de Stalinskaya.

Diz-se que Stalin teria supostamente bebido um vinho semi-doce da Geórgia com Churchill e Roosevelt nas dependências do palácio, quando da Conferência de Yalta, em 1945. Mais recentemente, após a anexação da Crimeia pelos russos, Vladimir Putin recebeu no palácio Silvio Berlusconi. E juntos eles visitaram os túneis e a coleção centenária (preservada pelos soviéticos) de mais de um milhão de garrafas, e diz-se que abriram uma garrafa de Jerez, safra 1775.

Imitações

A vinícola Massandra foi fundada em 1894 pelo príncipe Lev Golitsyn, viticultor russo, e pioneiro na produção de vinhos espumantes na Crimeia, a pedido do czar Nicolau II. Golitsyn possuía uma coleção de centenas de vinhas diferentes em sua outra propriedade, Novyi Svit (“Novo Mundo”, em ucraniano e em russo), cerca de 120 quilômetros ao norte de Massandra. Aos poucos, ele foi descobrindo as vocações e os desafios dos terroirs da Crimeia, introduzindo na península castas tão diversas como Riesling e Saperavi, Sercial e Pinot Noir. Golitsyn foi o primeiro viticultor russo a ter o brasão dos Romanov em seus rótulos — tanto nos espumantes de Novyi Svit como nos doces e fortificados vinhos de Massandra —, mas não por muito tempo.

Estatizada no ano de 1922 e tendo a sua produção regulamentada e protegida por lei em 1936, a vinícola Massandra mudou de direção, e passou a produzir vinhos em larga escala para o mercado interno soviético, o que inexoravelmente dissolveu a qualidade. O catálogo da vinícola era como uma viagem, uma degustação, pelas grandes regiões produtoras de vinhos de sobremesa: da ilha da Madeira até o Porto, de Jerez até Tokaji, os vinhos da Massandra emulavam os estilos de clássicos da Europa Ocidental, e graças à pesquisa e trabalho do príncipe Golitsyn, vinhas de todo o continente europeu já estavam bem fincadas no terreno de granito da costa sul da Crimeia. Nas ex-repúblicas soviéticas, ainda hoje é muito comum chamar espumante de Champagne, e brandy de Cognac — o limitado mercado de tais produtos faz com que o uso indevido das denominações controladas passe quase despercebido.

Blends esdrúxulos?

Castas que não são combinadas na Europa Ocidental, como Sémillon e Pedro Ximénez, compunham o “Porto Branco” soviético, juntas com a Aligoté. Outros vinhos, como os “Madeira”, eram produzidos com um blend de Sercial, Verdelho, Shabash, uma uva autóctone, e um pouco de Albillo. Alguns rótulos consistiam em um blend de uvas autóctones, como o licoroso Black Doctor, produzido com castas praticamente desconhecidas fora da Ucrânia e da Crimeia, como a Ekim- -Kara. Mas talvez a variedade que tenha desenvolvido melhor a sua expressão em Massandra foi a Moscatel, a primeira a vingar verdadeiramente na península.

Com as sanções comerciais impostas pela ocupação russa, a indústria do vinho na Crimeia atende, quase que exclusivamente, o mercado russo: beber um vinho de Sevastopol em Kiev ou em Odessa é praticamente impossível. E, no entanto, novos produtores têm apostado na península, imprimindo uma vitivinicultura moderna e de qualidade, como Pavel Shvets, da vinícola UPPA: pioneiro na produção de vinhos biodinâmicos na Crimeia. Os vinhos de Shvets, outrora sommelier premiado em Moscou, são frescos, minerais e têm chamado a atenção de especialistas e entusiastas do vinho. A tradição de vinhos doces e licorosos, criada por príncipes e mantida pelos soviéticos, resiste hoje mais pela sua excentricidade do que pela qualidade. As clássicas emulações da Massandra continuam a ser produzidas, em menor escala, para um específico mercado de curiosos, colecionadores e de nostálgicos dos tempos soviéticos.

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