Envelhecer um vinho não é ciência exata, mas com algumas dicas podemos fazer nossa parte
por Redação
Guardo ou abro? Quem já não se pegou diante desse dilema, um dos mais interessantes do mundo do vinho?
Será que devo beber agora ou vale a pena guardar essa garrafa por mais algum tempo e desfrutar da evolução? Aliás, será que vai haver alguma evolução? E, se houver, será que meu paladar vai apreciar? Pois é, a questão inicial tem muito mais desdobramentos do que alguns imaginam.
Há quem aprecie os vinhos por sua fruta e frescor juvenil. Há quem, às vezes, se incomode com a opulência e exuberância de alguns rótulos na juventude. Há quem guarde seus vinhos por longos períodos na expectativa de que, com o tempo, os sabores surpreendam. Apreciar vinhos envelhecidos muitas vezes é controverso. Alguns dizem que a espera não traz nada de bom, só se perde o frescor da fruta. Outros, contudo, apontam que somente o tempo é capaz de trazer certas nuances que são imperceptíveis em um primeiro momento.
No entanto, o envelhecimento dos vinhos em garrafa, além de ser um tema controverso, ainda é envolto por um certo “mistério” em relação às reações que ocorrem ao longo dos anos. Como um vinho evolui ao longo do tempo? Por quais processos passa e que levam a essa transformação? Por que um vinho envelhece melhor do que outro? São tantas as questões e variadas as possibilidades de respostas.
Antes de mais nada, talvez seja preciso tentar compreender os fatores que fazem com que um vinho possa suportar bem um envelhecimento em garrafa ou não. As respostas para isso geralmente aparecem prontas na boca dos especialistas, mas há nuances a serem avaliadas e situações que colocam em dúvida algumas “certezas”. Por exemplo: uma das teorias coloca todo o peso do bom envelhecimento na acidez do vinho. Ou seja, um vinho com boa acidez envelheceria melhor do que outro com acidez mais baixa.
Para todos, a acidez é realmente um ponto inquestionável, mas vamos debruçar sobre essa questão por um momento. Se pararmos para pensar friamente, a acidez geralmente se concentra mais em vinhos de safras mais frias do que em anos mais quentes, assim como em regiões vitivinícolas mais frias. Em última análise, isso pode significar até mesmo que os vinhos teoricamente com maior capacidade de envelhecimento seriam, na verdade, os de safras ditas “mais difíceis”. Todavia, em degustações de vinhos antigos, nem sempre é isso o que encontramos. Há vinhos que contrariam as expectativas, tal como ocorreu recentemente em uma vertical da Quinta do Ameal – que você confere nesta edição. Nela, vimos brancos de safras quentes apresentarem uma evolução mais interessante do que outros de safras frias, por exemplo.
Algumas vezes, vinhos que “nasceram” com muita acidez podem não evoluir tão bem. Com o passar do tempo, a fruta pode começar a desaparecer enquanto a acidez permanece alta, e assim o vinho se torna progressivamente menos equilibrado à medida que a acidez fica mais nítida e a fruta desaparece.
Portanto, apesar de a acidez ser fundamental, talvez ela não seja o único ponto a ser considerado na equação. Dessa forma, há quem aponte que o papel dos taninos, do álcool e do açúcar, em comunhão com a acidez, em algo que se convencionou chamar de “equilíbrio”, seja a resposta para poder entender a capacidade de evolução de um vinho. Ou seja, vinhos bem balanceados desde o início teriam mais chance de evoluir bem do que aqueles que, por alguma razão, parecem desequilibrados no começo de suas vidas, seja com muita acidez, muitos taninos etc. Ainda assim, provas de safras antigas de clássicos bordaleses, por exemplo, colocam essa premissa em cheque, pois há anos que resultaram em vinhos mais tânicos e, depois de bom tempo em garrafa, eles se mostraram lindamente, mais interessantes até do que alguns de safras próximas tidas como “mais equilibradas”.
Se o equilíbrio já é algo relativamente difícil de julgar, há quem aponte que o segredo da longevidade possa estar em um ponto ainda mais “imponderável”, que pode ser considerado como a “essência” do vinho. Ou seja, numa tentativa de abarcar o conceito, podemos pensar numa conjunção de todos os fatores anteriormente citados somados a uma questão um pouco subjetiva, tal como o sabor e a percepção da bebida como um todo no paladar. Somente assim se explicaria como um rótulo com acidez, taninos e estrutura de modesta a moderada poderia envelhecer bem – uma situação pouco comum, mas que, às vezes, ocorre.
Há quem acredite que um dos pontos por trás da boa evolução de muitos vinhos “antigos” é o fato de terem sido produzidos com técnicas não tão modernas, ou seja, menos intervencionistas. E um dos pontos mais destacados é o fato de muitos nunca terem sido filtrados ou clarificados – processos que passaram a se tornar mais comuns em meados do século passado, graças não somente a técnicas mais apuradas, como também a tecnologias que foram sendo implementadas na vitivinicultura com o passar dos anos.
Mas, degustações comparativas de vinhos, obviamente não tão antigos, que passaram por filtração e clarificação, e outros que não passaram por esses processos, nem sempre chegam à conclusão de que a evolução dos últimos é melhor. Como algumas técnicas ainda são muito recentes, só saberemos o seu real impacto na evolução do vinho daqui a muitos anos. Quem sabe o que pode acontecer no futuro com uma bebida que passou por spinning cones, por exemplo?
Diante de tudo isso, há uma premissa que os mais experientes do mundo do vinho sempre retomam quando falam sobre evolução: não há grandes vinhos, mas grandes garrafas. Ou seja, acidez, tanino, álcool, equilíbrio, essência etc., talvez de nada adiantem se, antes disso, não houver uma boa conservação. Já provamos garrafas de vinhos “simples”, que a princípio não seriam pensados para uma longa guarda, mas que se mostraram surpreendentes – e muito desse sucesso se deve ao estado de conservação, em ambiente adequado, com temperatura e umidade certas, ao abrigo da luz etc. Ou seja, as condições de armazenamento são um dos fatores mais importantes na capacidade de envelhecimento de um vinho. E é por isso que nem sempre duas garrafas de um mesmo vinho evoluem da mesma forma.
Outro ponto bastante controverso no que tange a evolução dos vinhos é o que chamamos de “janelas de degustação”, ou seja, o período de tempo em que, teoricamente, o vinho vai estar em seu “melhor momento” para ser apreciado. Essas previsões tendem a ser baseadas em experiências anteriores, supondo como um vinho poderá estar comparando com a evolução vista em rótulos similares ao longo dos anos. Ou seja, se vimos que um Bordeaux de uma determinada safra mais antiga teve uma janela de degustação interessante que começou 10 anos após sua safra e durou cerca de 20 anos depois disso, supomos que um vinho bordalês de mesma estirpe e safra com características similares pode evoluir da mesma forma. Mas, juntamente com experiência e conhecimento, há um bom tanto de subjetividade nessa avaliação. Ou seja, não se pode levar uma janela de degustação a “ferro e fogo”, deve-se entendê-la como um guia, não uma regra.
O certo é que o envelhecimento do vinho exige tempo, dedicação e um pouco de idealismo. Há quem tente abreviar esse tempo e, para isso, há estratégias que vão desde decanteres, a funis de aeração, a taças mais abertas, assim como a processos tecnológicos com gadgets modernos. Mas, no fundo, não há substituto para o bom e velho tempo. Segundo uma pesquisa de Andy Waterhouse, da universidade de Davis, na Califórnia, o tempo médio que um vinho passa no decanter é insuficiente para alterar drasticamente a estrutura tânica. Em vez disso, parece que o consumidor sente que o vinho está mais macio devido ao aumento da suavidade do nariz, pois a rápida oxidação de certos aromas (especialmente alguns tióis à base de enxofre) não apenas “limpa” o nariz, mas também faz a textura de um vinho parecer mais suave.
Mas vale a pena então guardar um vinho para envelhecer? Será que depois de determinado tempo você vai gostar do que vai encontrar na garrafa? Para entender o seu limiar para saborear um vinho envelhecido, a melhor das estratégias é empírica, ou seja, comprar uma caixa inteira de um só rótulo e colocar na adega. Abra uma garrafa a cada poucos meses ou anos, fazendo anotações. Esta é a melhor forma de determinar o nível de evolução que você aprecia.
Falando sobre as mudanças dos vinhos com o tempo, podemos apontar algumas coisas relevantes. Os vinhos tintos tendem a perder a cor, enquanto os brancos ganham, e todos os tons seguem em direção ao marrom. Os sabores frutados e florais geralmente dão lugar a nuances terrosos mais austeros. E todos os elementos se integram melhor ao corpo, pois os taninos precipitam e a acidez diminui. Se for espumante, as bolhas diminuem. Se for doce, o açúcar residual parece se moldar no palato. Teoricamente, o vinho fica aromaticamente complexo e texturalmente sedutor. Mas se um vinho não foi feito ou pensado para envelhecer, os resultados podem não ser os melhores.
Taninos, ácido, açúcar, álcool e aromas evoluem com o tempo, mas cada elemento se transforma em seu próprio ritmo. Isso não apenas aumenta a complexidade final de um vinho, mas também torna muito mais difícil prever com precisão uma janela de degustação, como falamos anteriormente.
A primeira questão a se observar na evolução é o oxigênio. Ele é essencial tanto para a produção quanto para a maturação do vinho, pois é o reagente para uma variedade de processos químicos. Acredita-se que os vinhos que passam por longa e lenta exposição ao oxigênio são os que melhor se habituam a ele ao longo da evolução – tal qual uma vacina que nos protege de doenças a nos expor a doses de vírus ou bactérias.
De todos os elementos estruturais do vinho, os taninos sofrem a transformação mais marcante. Em um primeiro momento, eles são pequenos e possuem um forte sabor amargo. O oxigênio e o calor unem suas moléculas em cadeias. À medida que essas correntes se alongam, os taninos perdem o amargor e ganham adstringência. Este processo fica consideravelmente mais lento quando o vinho é engarrafado, mas continua indefinidamente. Depois de um tempo, algumas cadeias ficam tão longas que precipitam e formam sedimentos. Acredita-se que isso resulte em um vinho de sabor mais suave. Desta forma, o sabor dos taninos evolui de amargo para cada vez mais adstringente, para suave.
Os taninos são considerados essenciais no envelhecimento porque são conservantes. Eles “desviam a atenção” do oxigênio de outros compostos do vinho. Ou seja, são antioxidantes porque eles próprios são oxidados preferencialmente. Então, a densidade fenólica pode ser um sinal de bom potencial de envelhecimento. Nos vinhos brancos, isso pode ser obtido pelo contato com a pele (bâtonnage e outros processos) ou pelo uso de barricas.
No vinho tinto, a cor vem da concentração de antocianinas, que estão relacionadas aos taninos (ambos são polifenóis). As antocianinas são uma classe de compostos derivados principalmente da casca da uva. Elas são bastante instáveis e precisam se ligar aos taninos para formar uma cor duradoura, portanto, sem taninos para se ligar, o vinho perde rapidamente a intensidade da cor. Tal como acontece com os taninos puros, algumas das cadeias de antocianina-tanino se alongam com o tempo até que as moléculas se tornem tão grandes que precipitam. Dessa forma, um vinho tinto perde lentamente a cor. E o escurecimento ocorre devido ao acúmulo de compostos fenólicos oxidados.
Um maior nível de acidez ajuda a prevenir a oxidação de uma série de compostos, retardando o processo de envelhecimento. Isso é especialmente verdadeiro para os polifenóis, o que pode explicar parcialmente por que os taninos são tão lentos para se resolver em tintos de alta acidez.
Existem alguns tipos de ácido no vinho, mas o tartárico é o mais relevante para a questão. Os ácidos málico e cítrico costumam estar presentes em quantidades menores e são muito mais suscetíveis à degradação bacteriana (que geralmente é anterior ao engarrafamento). Durante o envelhecimento em garrafa, o tartárico e, em menor grau, o ácido acético (o principal constituinte da acidez volátil) desempenham os papéis mais importantes.
Com o passar do tempo, a quantidade de ácido no vinho diminui. Mas embora essa perda seja mensurável, a mudança no sabor é quase imperceptível. Contudo, como a acidez aumenta a percepção de adstringência dos taninos, mesmo uma pequena perda de ácido resultará em um vinho com uma sensação mais suave. Uma redução na acidez também torna o vinho menos vibrante visualmente e isso explica por que a mudança na cor é muito mais dramática nos tintos do que nos brancos.
O ácido tartárico diminui no vinho principalmente por meio da formação de cristais de bitartarato de potássio. Na produção de vinho branco, esse fenômeno é geralmente contornado por meio da estabilização a frio, mas nos vinhos tintos, esses cristais se misturam com os taninos precipitados e as antocianinas para se tornarem parte do sedimento.
Embora acima de um certo nível o álcool atue como um conservante (em vinhos fortificados, por exemplo), não se pode dizer que isso seja um fator essencial em vinhos de mesa. A função mais importante do álcool é a inibição do crescimento microbiológico. A bactéria acética, cujas atividades metabólicas transformam o vinho em vinagre, dificilmente sobreviverá em ambientes com álcool acima de 15,5%.
O álcool também tem um impacto no aroma de um vinho, já que muitos compostos são muito mais solúveis em álcool do que água. Isso significa que, quanto maior o volume alcoólico, mais tempo os aromas do vinho tendem a permanecer na solução. Em outras palavras, quanto mais álcool, maior o limiar desses aromas.
O álcool também afeta o paladar, pois contribui com uma doçura sutil que atenua a adstringência e suaviza a percepção do ácido. Tal como acontece com a acidez, um pouco de álcool é perdido ao longo do envelhecimento. Isso ocorre principalmente por meio da esterificação, embora o efeito sobre o sabor seja insignificante.
Entramos no reino dos vinhos doces, alguns dos mais longevos do mundo. E uma das razões para sua vida longa seria o aumento da pressão osmótica (que inibe o crescimento microbiano) e a oxidação preferencial do açúcar. Dessa forma, o açúcar se comporta como o tanino dos tintos. A botrytis complica as coisas porque produz uma grande quantidade de enzimas oxidantes altamente eficientes, razão pela qual os vinhos geralmente requerem mais enxofre. Embora isso tenha implicações, a desvantagem é equilibrada pelo fato de que, por meio da secagem das uvas, a botrytis concentra não apenas açúcares, mas ácidos (principalmente málico e cítrico) e compostos fenólicos.
As leveduras liberam enzimas especiais, aumentam o corpo, previnem a formação de cristais, consomem oxigênio e promovem uma atmosfera redutora. E essa atmosfera redutora é crítica para o envelhecimento, pois ajuda a manter a oxidação sob controle, bem como a diminuir e adiar o escurecimento. De todas as enzimas liberadas pelas leveduras, as mais prevalentes são as redutases e as enzimas hidrolíticas. Esses compostos têm várias funções, mas seu efeito no aroma é o mais notável. As enzimas hidrolíticas aumentam a taxa de liberação das moléculas aromáticas e as redutases ajudam a mitigar cheiros potencialmente desagradáveis. As leveduras também aumentam o corpo do vinho, liberando ácidos graxos e certas proteínas na solução.
De todas as mudanças com o tempo em garrafa, a aromática é a mais complexa. Uma das primeiras coisas que acontecem com o aroma de um vinho à medida que envelhece é a perda dos aromas primários. Eles são compostos principalmente de tióis (toranja, maracujá), ésteres (flores brancas, frutas vermelhas) e terpenos (lichia, rosa), muitos dos quais são bastante sujeitos à oxidação ou hidrólise – outra forma de degradação. Curiosamente, as pirazinas (pimentão, erva) são relativamente estáveis, mesmo ao longo das décadas.
Alguns dos aromas associados ao envelhecimento da garrafa nem sempre são resultado de novos compostos que foram sintetizados com o tempo. Muitas vezes, eles já estavam presentes, mas mascarados por aromas mais poderosos. Também é provável que a mudança de equilíbrio das moléculas de aroma ao longo do tempo afete nossa percepção da textura de um vinho – conforme pesquisa da universidade de Davis citada anteriormente. Sendo assim, as mudanças nas proporções de compostos aromáticos podem estar por trás da tão famosa “fase muda” de um vinho, em que ele parece não cheirar a nada. Ou seja, isso pode ser uma lacuna no período evolutivo.
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