Aquecimento global ou mudança no estilo dos vinhos. Afinal, de quem é a culpa?
por Arnaldo Grizzo
Ao que parece, em 2018 a maioria das regiões vitivinícolas do mundo (especialmente na Europa) estão batendo alguns recordes de precocidade na colheita. Em partes da Alemanha, a safra começou nas primeiras semanas de agosto. Em Champagne (a região mais setentrional da Europa continental), esta é a quinta vez que a colheita começou em agosto nos últimos 15 anos (lá a colheita se inicia tradicionalmente em setembro). Até mesmo na fria Inglaterra os produtores passaram a colher quase três semanas mais cedo em 2018.
Tudo indica que o aquecimento global está mostrando a sua cara. No entanto, apesar de alguns produtores mostrarem preocupação com o futuro, a maioria está é bastante entusiasmada com a qualidade potencial desta safra, em que o forte calor fez com que a maturação das uvas se adiantasse e fugisse das chuvas costumeiras da época tradicional de colheita. Em Champagne, por exemplo, viticultores estão falando abertamente de “safra do século”. Mas, apesar do entusiasmo, vale lembrar que, há quatro anos, pelo menos, o Comitê de Champagne, órgão que congrega e regula os produtores da região, vem trabalhando seriamente com “alternativas” para evitar os efeitos nocivos do aquecimento global. E, ao mesmo tempo que comemora uma boa safra, testa novas variedades em vinhedos experimentais. Contudo Champagne não é a única região francesa a procurar soluções caso o cenário do aquecimento piore. O Institut National de la Recherche Agronomique (INRA), principal instituto de pesquisas agronômicas da França e da Europa, tem se associado a diversas regiões vitivinícolas e, em alguns casos, também a produtores para testar novas variedades mais resistentes às mazelas que vem sendo trazidas pelo aquecimento global – que, muitas vezes, não se trata apenas do aumento da temperatura.
Ainda assim, voltando à questão da antecipação das datas de colheita, cada vez mais precoces, estaria esse fenômeno 100% atrelado ao aquecimento global? A mudança pelas quais o estilo do vinho e o paladar do consumidor vem passando nos últimos anos – ou seja, a busca por maior frescor e nem tanto por potência – também não teria influência direta nisso? Este é o ponto que vamos debater.
“Meses atrás estive envolvido numa discussão com grandes cientistas e líderes mundiais, incluindo o ex-presidente Barack Obama, e ficou claro que os problemas relacionados à mudança climática estão se acelerando. Desde o ano 2000, ocorreram 16 dos 17 anos mais quentes já registrados até hoje. Falando diretamente sobre a antecipação da colheita, na minha opinião, não se pode isolar os dois fatores (aquecimento global e mudança de estilo), pois ambas as coisas são responsáveis. Por exemplo, em 2017, em Portugal, as condições climáticas forçaram a antecipação da colheita, sem dúvida. Por outro lado, na minha capacidade de profissional, observo a tendência de produtores de colherem mais cedo. Como jurado de várias competições no mundo, vejo vinhos com mais elegância e frescor sendo premiados e, como consumidor, busco vinhos com mais tensão, harmonia, menos álcool e maior frescor também. Essas duas tendências, no momento, sobrepõem-se”, afirma Dirceu Vianna Jr., único Master of Wine brasileiro, que esteve presente na “Climate Change Leadership Porto Summit 2018”, uma conferência sobre o clima ocorrida em julho na cidade do Porto, em Portugal, que foi patrocinada, entre outros, por empresas vitivinícolas preocupadas com o futuro.
Recentemente, ouvem-se muitos enólogos falando sobre antecipar datas de colheita para preservar o frescor das uvas. Esse é um debate bastante em voga no Novo Mundo, especialmente na América do Sul, mas também vem sendo discutido em países do Velho Mundo. Em entrevista concedida à ADEGA em 2015, Francisco Baettig, enólogo da Errázuriz, no Chile, já apontava que vinha antecipando as datas de colheita em função do frescor. Ele afirmou que começou a fazer isso em sua linha Aconcágua Costa. “Colho três semanas antes. Em anos mais quentes, até um mês antes. Não é algo ortodoxo, mas quero um vinho com mais acidez. É uma evolução de gosto”, disse. Pouco depois, ele revelou que foi fazendo ajustes também nos ícones da vinícola. “Estou começando a fazer uma mudança interessante, muito suave, mas que vai se traduzir em breve. Em 2005 e 2006 foi o ápice da madurez e da madeira. Isso começou a mudar. O Viñedo Chadwick de 2015 colhi em 20 de março, sendo que antes se colhia em 20 de abril”, apontou na época.
Assim como ele, diversos outros enólogos têm seguido essa tendência de antecipação de colheitas para manter a acidez dos vinhos. Quem também acredita que essa tendência de consumo de vinhos mais frescos pode estar ajudando a influenciar na antecipação da colheita é o enólogo brasileiro Miguel Ângelo de Almeida, do grupo Miolo, apesar de não identificar necessariamente uma antecipação no Brasil. “No nosso caso, não é rigoroso afirmar que está a ocorrer uma antecipação no início das colheitas por alterações climáticas. As 15 vindimas colhidas no Seival (Campanha Meridional, no Rio Grande do Sul) são consideradas um período curto pelos climatologistas para serem feitas inferências, pelo menos não de forma científica. É verdade que a crítica especializada e o consumidor estão cada vez mais a promover e a beber vinhos mais frescos, com menor graduação alcoólica, e leis cada vez mais rigorosas quanto ao consumo de álcool estão a fortificar esta tendência”, diz.
No entanto, há quem observe isso com muito mais preocupação. “Nossa colheita está cada vez mais antecipada e mais rápida, pois as uvas amadurecem mais cedo”, afirma Justin Jarrett, produtor australiano da See Saw Wines. Ele aponta que os produtores da região de Orange, na Austrália, estão buscando terrenos cada vez mais altos para poderem manter as uvas mais frias. “Um aumento de dois graus na temperatura significa que aqueles que querem continuar com um estilo de vinho semelhante ao que estão produzindo agora terão que subir 200 metros”, diz Jarrett.
Harry Peterson-Nedry, enólogo da Ribbon Ridge Winery, no Oregon, Estados Unidos, acompanha os registros climáticos há décadas. Segundo ele, as temperaturas em McMinnville, em Willamette Valley, o centro comercial da região vinícola, foram 17% mais altas durante as safras de 1997 a 2007 do que entre 1961 e 1990. Quando ele começou a cultivar em 1980, a região era ideal para uvas de clima frio como Pinot Noir e Riesling. “Agora, está quase quente o suficiente para Cabernet Sauvignon”, diz.
“Os climas mudaram mais rapidamente do que o previsto. O clima é mais variável e mais quente – más notícias para culturas especiais, como uvas para vinho, que são muito sensíveis ao clima”, aponta Greg Jones, do Linfield College, no Oregon. Segundo ele, não só está ficando mais quente nesse estado norte-americano, como há mais variação de temperatura. “Os produtores podem antecipar isso até certo ponto; e talvez eles possam se adaptar. Mas se a seca, chuvas fortes ou geadas começarem a ser menos previsíveis, será mais difícil para se adaptar”, completa, lembrando que, além do aumento da temperatura, o aquecimento global tem gerado cada vez mais eventos climáticos extremos no mundo.
Produtores tradicionais na Europa, como a família Torres, da Espanha, também estão preocupados com o aquecimento global. Segundo eles, as temperaturas médias nos vinhedos da empresa aumentaram 1ºC ao longo de 40 anos e, por isso, as colheitas estão ocorrendo cerca de 10 dias antes das datas de 20 anos atrás.
Se não há muito consenso de que a antecipação das colheitas se deve mais ao clima ou à evolução do estilo dos vinhos, há um pouco de consenso de que a colheita está, sim, ocorrendo cada vez mais cedo. Uma pesquisa publicada em 2016 por dois cientistas – Benjamin I. Cook, da Universidade de Columbia, e Elizabeth M. Wolkovich, de Harvard – apontou que as datas de colheita têm sido antecipadas em cerca de 10 dias durante as últimas décadas graças, segundo eles, a fatores ligados ao aquecimento global. Essa pesquisa levantou dados desde o século XVII especialmente na França e deixou os produtores europeus um pouco preocupados, pois, em um determinado momento, antecipar a data de colheita não terá efeito e algumas regiões e variedades podem sofrer.
Em um artigo escrito em um jornal acadêmico, Cook disse: “Analisamos 400 anos (1600- 2007) de dados da França e da Suíça para mostrar que a mudança climática já está afetando as colheitas de uva para a produção de vinho. Nossa análise mostrou que as colheitas estão acontecendo mais cedo, o que historicamente tem sido um prenúncio de vinhos de alta qualidade. Mas também descobrimos que mudar as condições climáticas locais poderia dificultar a determinação de quando esperar vinhos de alta qualidade, e que temperaturas mais altas poderiam forçar os viticultores a usar diferentes variedades de uvas”.
Ou seja, Cook pondera que, safras consideradas de grande qualidade (principalmente na França) quase sempre são marcadas por colheitas ligeiramente antecipadas. Safras ditas históricas geralmente sempre são mais quentes e mais secas que a média anual convencional. O ano de 2005 em Bordeaux foi considerado primoroso, por exemplo, e teve média de precipitações cerca de 200 mm menor e temperaturas quase 2ºC mais altas. Vale lembrar, porém, que anos de canículas ou secas extremas não resultam em grandes vinhos.
Na pesquisa, os dois cientistas verificaram que, desde 1981, as colheitas estão ocorrendo cerca de 10 dias antes da média dos últimos 400 anos. Segundo os dados, em apenas dois anos, desde 1981, as colheitas ocorreram tardiamente.
Cook notou também que, além do descolamento da relação entre calor e seca no que tange a qualidade da safra (veja box na página seguinte), cada vez mais tem-se visto um aumento nas safras tidas como de maior qualidade, mesmo quando não há seca. “Há, no entanto, um limite para quanto mais cedo a uva pode amadurecer e a colheita ocorrer, e, ainda assim, traduzir em vinhos de maior qualidade”, pondera.
Ele lembra, por exemplo, da safra 2003. Segundo ele, ela ocorreu quase um mês antes da média graças a uma onda de calor recorde. Contudo, a safra precoce não produziu vinhos excepcionais. “À medida que as temperaturas sobem, isso sugere que pode haver algum tipo de limite além do qual o avanço contínuo das datas de colheita não ajudará a produzir safras de alta qualidade”, alerta.
Uma pesquisa de Cornelis van Leeuwen e Philippe Darriet, intitulada “O impacto da muBRASIL? dança climática na viticultura e na qualidade do vinho” diz que um aumento na temperatura desencadeia uma antecipação na fenologia. Mas uma antecipação nas datas de colheita somente não resolveria a questão dos diferentes pontos de maturação – alcoólica e fenólica. “Dados de um laboratório francês mostram que houve uma evolução significativa na composição da uva durante a safra nos últimos 30 anos. Esses dados são baseados em milhares de amostras analisadas a cada ano. Os níveis potenciais de álcool aumentaram em mais de 2% em volume, a acidez total diminuiu em 1 g de tartarato/l e o pH aumentou em 0,2 unidades. Modificações semelhantes na composição da uva foram relatadas em muitos outros vinhedos. É provável que esta evolução não seja apenas o resultado de um aumento na temperatura. Outros fatores incluem aumento do dióxido de carbono atmosférico (CO2) (mais 15% no período), aumento da radiação, melhores técnicas vitícolas, entre outros. Mais pesquisas são necessárias para quantificar o impacto de cada um desses fatores na composição da uva”, aponta o estudo.
Voltando à colheita de Champagne deste ano, apesar de toda a celebração em torno da safra, os chefs de cave debatem a relação entre o potencial alcoólico e a acidez das uvas. Antoine Malassagne, proprietário da Champagne Le Noble, mostrou-se preocupado com os níveis relativamente baixos de acidez este ano. “Nossos níveis de acidez são significativamente menores do que em outros anos, com média de pouco mais de 5 g/l”, afirmou Malassagne, que decidiu colher as uvas com um percentual de álcool potencial mais baixo para preservar a acidez. Já Benoit Lahaye, da Champagne Benoit Lahaye, contesta: “Nunca vamos preservar alta acidez durante um verão quente, especialmente porque as noites foram excepcionalmente quentes. Se alguém realmente quisesse atingir níveis de acidez de nove graus, teria que colher com 6% de álcool potencial em algum dia no início de julho”. Gilles Descotes, da Bollinger, e Dominique Demarville, da Veuve Clicquot, dizem também não estar muito preocupados com os níveis de acidez, pois, segundo eles, o nível de ácido málico é baixo. Ou seja, após a fermentação malolática, os níveis de acidez devem voltar à média. Contudo, Demarville ponderou que poderia frear a fermentação malolática em 10% dos seus vinhos para tentar manter o caráter mais leve do ano, mas admitiu que estava correndo um risco, pois isso poderia mudar o estilo da casa.
Os cientistas descobriram que cada grau centígrado de aquecimento antecipa as colheitas de uva para cerca de seis ou sete dias. Com esse efeito projetado para continuar, um estudo de 2011, feito por Lamont-Doherty Yves Tourre, sugere que a Pinot Noir, por exemplo, não conseguiria ser produzida em muitas partes da Borgonha. Há relatórios ainda que apontam que Bordeaux pode ficar sem seus Cabernet Sauvignon e Merlot.
Um controverso estudo de 2013 – feito por nove cientistas de universidades distintas – projeta que, em 2050, cerca de dois terços das regiões vinícolas podem não ter mais climas apropriados para as uvas que cultivam atualmente. Segundo ele, variedades não mais viáveis no Napa, na Califórnia, podem se adequar em Washington ou na Columbia Britânica. O sul da Inglaterra pode se tornar a “nova Champagne”; as colinas da China central, o novo Chile. “Se as pessoas estiverem dispostas a beber variedades italianas cultivadas na França e a Pinot Noir, da Alemanha, talvez possamos nos adaptar”, comenta Elizabeth Wolkovich.
Liz Thach, professora de gestão e negócios de vinhos em Sonoma State University, afirma que o estudo está dizendo aos produtores o que eles já sabem. “Algumas pessoas ainda podem ser céticas sobre o aquecimento global, mas não alguém da indústria do vinho. Todo mundo acredita nisso, porque todo mundo vê isso ano a ano – é aqui, é real, não está indo embora”, diz. Não há como negar que a tendência de mudança climática em escala global está afetando as regiões vitivinícolas, mesmo que a antecipação das datas de colheita possa ter certa relação com uma mudança de paladar e filosofia dos enólogos.