Curiosidades

Proclamação da República: conheça os vinhos que a corte brasileira bebeu antes do fim da monarquia

Bebidas servidas em festa uma semana antes da data valeriam mais de 250 mil dólares, segundo historiador

por Arnaldo Grizzo

O fim da monarquia no Brasil foi celebrado com uma grande seleção de vinhos

É muito provável que a manhã da sexta-feira, 15 de novembro de 1889, não tenha sido tão comentada pela população do Rio de Janeiro quanto a noite do sábado, 9 de novembro, seis dias antes. Na sexta, um levante militar proclamou a república e, segundo historiadores e mesmo os jornais da época, a população pouco “se importou”. Já no sábado anterior, houve uma intensa concentração de populares ao redor da Ilha Fiscal, na Baia de Guanabara.

Naquele dia ocorreu um dos maiores eventos da monarquia brasileira, o famoso e fatídico Baila da Ilha Fiscal, em homenagem aos oficiais do navio chileno “Almirante Cochrane” e também celebrando as bodas de prata da princesa Isabel e do conde d’Eu. A vultuosa festa foi preparada por Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto, presidente do conselho de ministros de Dom Pedro II. Mesmo sabendo que o monarca era avesso às recepções e raramente promovia festas e bailes (diz-se que o último grande evento antes da Ilha Fiscal havia sido quase 40 anos antes), a ideia de Ouro Preto era celebrar o Império em um momento em que ele estava sendo mais questionado.

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Até hoje, o baile é lembrado, mas, infelizmente para a monarquia, por ter dado ainda mais ânimo aos republicanos e, segundo alguns historiadores, por ter sido a pá de cal do regime. Entre os questionamentos da população e principalmente dos partidários da república, estava o gasto exorbitante com a festa. O cardápio, guardado até hoje no acervo da Biblioteca Nacional, dá uma ideia da grandiosidade do evento e o menu de bebidas deixaria qualquer enófilo de queixo caído.

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Dom Pedro II raramente fazia recepções, o último grande
evento social de seu reinado havia
sido 40 anos antes

RECEPÇÃO

O baile começou a ser planejado meses antes e estava previsto para ocorrer em 19 de outubro. No entanto, a morte do rei de Portugal, sobrinho de Dom Pedro II, fez com que fosse adiado. Vale dizer que a imprensa carioca já noticiava o evento, muitos deles com escárnio, desde antes mesmo da distribuição dos convites (cerca de 2 mil) no início de novembro.

A Confeitaria Paschoal foi responsável pelo cardápio, que teria sido preparado por 40 cozinheiros e 50 ajudantes, e era composto de mais de 20 tipos de pratos diferentes e 12 opções de sobremesa, incluindo 12 mil porções de sorvete de diversos sabores. Somente os vinhos tinham mais de 30 tipos à disposição dos convidados.

A recepção começou às oito da noite com uma seleção de drinques e bebidas como Cognac e licores, mas também vinhos como Sherry (Jerez), Madeira, Rhin (região da Alsácia), Moscatel de Málaga e Moscato Bianco.

Diz-se que a família imperial chegou à Ilha Fiscal por volta das 22 horas, quando o baile teria tido início efetivamente, com os convidados e penetras (acredita-se que mais de 4.500 pessoas estavam na festa naquele dia, o que significa que, para cada dois convidados houve outro que entrou de bicão) dançando no salão. Aliás, o belo palácio em estilo gótico da Ilha Fiscal havia sido finalizado em abril daquele ano e a ilha, como no nome já denota, servia de aduana para as embarcações que entravam no Rio de Janeiro.

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O cardápio completo do baile em homenagem aos oficiais do navio chileno
“Almirante Cochrane”

Por volta da meia noite, a comida foi servida, o que, segundo relatos, causou uma correria para as mesas, um comportamento que teoricamente não condizia com o naipe de convidados, pois a maior parte era composta pela “nobreza brasileira”. Os jornais, porém, revelam que havia, na verdade, uma grande mistura de tipos, de pessoas cuja família possuía títulos nobiliárquicos desde o princípio da monarquia brasileira até militares de baixo escalão. A população mais pobre efetivamente não teve acesso à festa, mas ainda assim lotou balsas e pontos no entorno da ilha para admirar as luzes do local, que contou com uma iluminação nunca antes vista na capital brasileira da época.

OS PRINCIPAIS CHÂTEAUX

A balburdia teria sido tão grande que a família real decidiu ir embora antes mesmo de as sobremesas serem servidas. Acredita-se que muito da falta de compostura dos convidados deveu-se à grande quantidade de bebidas ingerida. As contas não são muito confiáveis, mas diz-se que mais de 300 caixas de vinhos foram servidas (ou seja, pouco menos de uma garrafa por pessoa) e mais de 10 mil litros de cerveja (mais de 2 litros por convidado).

Mas, além de beber em profusão, os presentes puderam provar vinhos de qualidade. O menu tinha uma página dedicada somente aos fermentados com uma lista requintada (mantivemos a escrita original do cardápio a seguir): Madère, Sherry, Grec Blanc, Marsala, Haut Sauternes Château d’Yquem, Johannisberg Liebfraumilch, Marcobrunner Auslese, Chablis, Moscato, Passito d’Asti, Pontet Canet, Margaux, Château Lafitte, Château Léoville, Château Bécheret, Château Duplessis, Falerno, Lacrima Christi, Madère Rouge, Chambertin-Pomard-Nuits-Romanée. A lista ainda continha Portos: Vicomte Vellar y Ellen 1834, Vieux Exposition, Extra Especial. E doces: Moscatel, Moscatel de Siracusa, Tokay, Constance, Mosel Mousseux, Lacrima Christi Mousseux. E, por fim, Champagne: Clicquot, Heidsièch Monopol, Heidsièch Grimum-Dry e L. Röederer.

A lista é interessante e repleta de grandes nomes que perduram até hoje. Entre os bordaleses estão alguns dos mais famosos vinhos de todos os tempos, como os Château Margaux e Lafite. Outros também renomados como Pontet-Canet e Léoville (que, na verdade, são três: Léoville-Las Cases, Léoville-Poyferré e Léoville-Barton), que também fazem parte da classificação de Bordeaux de 1855. O histórico Château Duplessis também estava no menu. Para os amantes da Borgonha, a seleção parecia promissora, com vinhos de Chambertin, Pomard, Nuits Saint Georges e Romanée, só é difícil saber de qual produtor ou negociante.

Não se deve esquecer dos Champagnes, com os Dom Pedro II raramente fazia recepções, o último grande evento social de seu reinado havia sido 40 anos antes 81 ícones Veuve Clicquot, Heidsieck & CO Monopole e Louis Roederer. Entre os doces, impossível não notar o mítico Château d’Yquem, de Sauternes, Tokay e um Porto de 1834, com nada menos que 55 anos nas costas. A lista é bastante eclética, com espumantes, brancos, tintos e doces de diversas procedências e estirpes, indo de Chablis a Madeira, de Jerez a Moscatel.

Deve-se notar ainda alguns nomes de vinhos míticos que acabaram “esquecidos” posteriormente, como Falerno – tido como um dos grandes vinhos do Império Romano –, Vin de Constance – um ícone sul-africano, que foi apreciado por Napoleão e acabou quase esquecido –, Lacryma Christi – um vinho napolitano que já foi reverenciado antigamente e hoje não tem mais o mesmo glamour –, Moscatel de Siracusa – um vinho doce siciliano famoso em outras épocas – por exemplo.

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HARMONIZAÇÃO?

Diz-se que haviam duas mesas com lugares para 500 pessoas, os principais convidados da festa. Os pratos servidos, pelo menos nos nomes, pareciam pomposos, com Crême à la Richelieu, Jacutinga et pigeons sauvages à la Guanabara, Galantine à la Province de Minas, Veau à la Siberienne, Grand pudding à la Diplomate etc. Uma lista dá conta de 3.000 pratos de sopa, 50 caixas de peixes, 800 latas de lagosta, 800 quilos de camarões, 100 latas de salmão, 3.000 latas de ervilhas, 1.200 latas de aspargos, 800 latas de trufas, 3.500 peças de caça, como faisão, por exemplo, 1.500 costeletas de carneiro, 1.200 frangos, 250 galinhas, 500 perus, 64 faisões, 80 patos, 23 cabritos, 25 cabeças de porco, 18 mil frutas, 20 mil sanduíches, 12 mil porções de sorvetes.

Uma lista tão grande de pratos e de vinhos certamente ofereceria uma vasta gama de harmonizações para quem realmente estivesse interessado em comer e beber com sabedoria, mas, ao que parece, não foi o que aconteceu no baile que culminou no fim da monarquia.

O historiador Carlos Cabral avalia que somente os vinhos servidos naquela noite valeriam mais de 250 mil dólares. Os valores gastos na época obviamente foram alvo de crítica da imprensa e dos republicanos. Diz-se que mais de 250 contos de réis, valor que seria equivalente a 10% do orçamento do Rio de Janeiro no ano, teria sido gasto com a festa. Sim, o “mau uso” do dinheiro do erário público apressou o fim do Império, mas não se pode dizer que a nobreza tenha aproveitado mal seus últimos dias.

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