Separamos algumas hipóteses que podem explicar o surgimento desta casta tão amada no mundo do vinho
por Por Arnaldo Grizzo e Eduardo Milan
No século XIII, o cavaleiro Gaspard de Stérimberg, retornou das Cruzadas e estabeleceu-se ao sul da cidade de Lyon, perto do entroncamento dos rios Rhône e Isère. Lá, ergueu uma capela para São Cristóvão e viveu como ermitão, isolado do mundo. Acredita-se que ele ou talvez outros cruzados, ao retornarem para a França depois das batalhas no Oriente Médio, teriam trazido consigo mudas de vinhas da cidade de Shiraz (ou Chiraz), na Pérsia, então um importante centro comercial da antiguidade.
Outra lenda dá conta de que os imigrantes gregos da cidade de Foceia (atualmente Foça, na Turquia) teriam criado relações comerciais no Mediterrâneo e também fundado portos e cidades, entre elas Massalia (Marselha). Assim, eles teriam trazido as mudas adquiridas em Shiraz, na Pérsia, e as implantado na região ainda no século VI a.C. Há chances ainda de a variedade ter sido originada no mar Egeu, numa das ilhas gregas das Cíclades chamada Siro (ou Syra).
No entanto, alguns acreditam que a origem da uva Syrah no Rhône é ainda anterior, remontando a 310 a.C. Na época, Agathocles, tirano que reinava na ilha siciliana de Siracusa (Syracusa) teria trazido consigo mudas de vinhas quando esteve no Egito. Da ilha, as vinhas teriam se espalhado pelo sul da França.
Outros ainda cogitam a ideia de que, nos primeiros anos depois de Cristo, Plínio, o Velho, filósofo e naturalista romano, teria descrito a variedade Syriaca, uma versão escura da uva Aminea, que crescia na Síria, como uma ancestral da Syrah. Há quem sugira que São Patrício, patrono da Irlanda, foi quem plantou as primeiras mudas de Syrah no Rhône quando fazia seu trajeto para a abadia de Lérins, na ilha de Saint-Honorat, perto de Cannes.
Já os viticultores albaneses creem que a Syrah tenha se originado em suas terras. Lá, cresce uma variedade tinta chamada Serina e Zezë e outra dita Shesh i zi, que teriam parentesco com a Syrah. Sérine, por sinal, é um dos nomes pela qual a variedade é conhecida.
E então? Qual hipótese você acha mais plausível para o surgimento da Syrah e sua instalação no Rhône? Antes de ficar matutando, saiba que absolutamente nenhuma delas está correta. As origens da variedade estão mesmo diretamente ligadas ao norte do vale do rio Rhône, mais especificamente na área ao norte do rio Isère e à leste do Rhône, até o lago de Genebra, entre a França e a Suíça, no departamento de Isère.
Essa hipótese foi levantada devido a uma análise de DNA feita em 1998 pela UC Davis e pelo INRA (instituto de pesquisas agronômicas) em Montpellier, no sul da França. O levantamento surpreendeu os cientistas e mostrou que a Syrah é um cruzamento natural entre a Mondeuse Blanche, branca, e a Dureza, tinta. A Mondeuse, natural da região de Savóia, próxima ao Rhône, costumava ser cultivada também em Ain e Isère. A Dureza, natural de Ardèche, logo a oeste do rio Rhône, costumava ser cultivada em Drôme e também em Isère. Portanto, os ampelógrafos concluíram que o nascimento da Syrah deve ter se dado em um local em que essas duas variedades eram plantadas, portanto, mais provavelmente em Isère por volta do século XII.
A data, porém, pode ser anterior, já que alguns estudiosos acham que a Syrah pode ter sido citada pelos primeiros naturalistas romanos como Columella e Plínio, o Velho, no século I da era cristã. Em seus escritos, eles apontavam uma variedade chamada de Allobrogica, cultivada na terra dos Alóbroges, que vai do lago de Genebra até Grenoble e do norte de Savóia até Vienne, cidade que faz parte de Côte Rôtie, logo ao sul de Lyon. Essa uva era usada para o picatum, um vinho resinoso feito perto de Vienne. Segundo Plínio, era uma casta de maturação tardia cultivada em terras frias. Daí também poderia ter surgido o nome Syrah, que seria uma derivação de Sérine, que viria do latim “serus” (tardio).
A Syrah, por sinal, possui diversos nomes e não apenas a sua variação mais comum Shiraz, que ficou famosa devido ao boom dos vinhos australianos. Aliás, até mesmo na Austrália ela possui ainda outro nome e pode ser chamada de Hermitage. Mas, suas variações mais comuns são: Sira, Sirac, Sirah, Syra, Syrac, além de, como já foi visto, Sérine, que também apresenta diversas possibilidades como: Sérène, Serine e Serinne. Ela também pode ser chamada de Petite Sirrah (não confundir com Petite Sirah, que é outra casta), Candive e Marsanne Noire.
Barthélemy Faujas de Saint-Fond foi o primeiro a citar a variedade e a chamou de “‘la Sira de l’Hermitage
A uva possui diversos nomes e, além de Syrah, pode ser chamada de Shiraz, Sérine, Candive, Marsanne Noire etc
A primeira citação conhecida sobre a Syrah é de 1781, pelo geólogo e naturalista Barthélemy Faujas de Saint-Fond, que a chamou de “‘la Sira de l’Hermitage”. Ele descreve: “produz um vinho agradável, generoso, apetitoso e que pode envelhecer bem: nós podemos misturar com uma pequena quantidade de uvas brancas, como é feito em Tain. Serine e Vionnier de Côte Rôtie também seriam adequadas”.
Como se pode perceber, a variedade ganhou sua fama no norte do vale do Rhône, especialmente em Hermitage e Côte Rôtie, onde serve de base para os principais tintos, sendo muitos varietais, mas também contendo pequenas parcelas de Roussanne e Marsanne (Hermitage), ou Viognier (Côte Rôtie). Nos vinhos de Crozes-Hermitage e Saint-Joseph, a Syrah também é majoritária, e, em Cornas, ela deve ser monovarietal.
Contudo, apesar de seu berço francês, a fama do nome Syrah, mais precisamente Shiraz, deu-se com o boom dos vinhos australianos entre os anos 1980 e 1990. Parte do prestígio veio com o Penfolds Grange Hermitage. Lançado em 1952 pelo enólogo Max Schubert, este Shiraz tornou-se mundialmente conhecido, ganhando o prêmio de vinho do ano da revista Wine Spectator em 1995 (já sem Hermitage no rótulo), e levou o nome da casta às alturas, tornando-a tão conhecida quanto outras tintas já fartamente decantadas como Cabernet Sauvignon, Merlot e Pinot Noir, por exemplo.
A Syrah chegou à Austrália em 1832, com James Busby, considerado o pai da indústria de vinhos no país. Ele teria trazido mudas em Montpellier, que na época eram conhecidas como Scyras, e mais tarde se provaram idênticas às de Tain, em Hermitage, daí o nome com que a uva ficou conhecida (Shiraz e Hermitage) por lá.
Syrah é a sexta variedade com maior área plantada no mundo, com 185.568 hectares
Não à toa, um levantamento feito em 2010 mostrou que a variedade é a sexta no mundo com maior área plantada, o equivalente a 185.568 hectares (o que representa incríveis 4% dos vinhedos do globo), perdendo apenas para Cabernet Sauvignon, Merlot, Airen, Tempranillo e Chardonnay. Para se ter uma ideia do crescimento que ela teve, em 1990, havia pouco mais de 35 mil hectares plantados no planeta, com a Syrah na 35a posição entre as mais cultivadas. Em 2000, o número passou para pouco mais de 101 mil ha, já aparecendo em oitavo lugar. Um crescimento de quase 200% em uma década.
Apesar de a França ter a maior quantidade de área plantada, com quase 70 mil ha, a Austrália vem logo atrás com cerca de 42 mil ha. Os outros principais produtores são: Espanha (20 mil ha), Argentina (12,8 mil), África do Sul (10,1 mil), Estados Unidos (9,1 mil), Itália (6,7 mil), Chile (6 mil) e Portugal (3,5 mil).
Apesar de a Austrália ter ficado com a fama, um dos primeiros lugares fora da França em que a variedade foi cultivada foi na África do Sul, onde teria chegado em meados do século XVII. Todavia, ela permaneceu uma casta pouco importante no cenário sul-africano até o boom dos anos 1980 promovido pelos australianos. Em 1878, a cepa chegou aos Estados Unidos e, apesar de não ter o mesmo sucesso da Cabernet Sauvignon e Pinot Noir, levou um grupo de viticultores a criar, nos anos 1980, a associação “Rhône Ranges”, para promover as uvas do Rhône em solo norte-americano. A organização conta, hoje, com mais de 170 membros.
Apesar de ter nascido na França, a fama da Syrah (Shiraz) ocorreu com o boom dos vinhos australianos entre os anos 1980 e 1990
A Syrah é uma uva de personalidade forte. Os vinhos feitos a partir dela normalmente apresentam bom corpo, são potentes e cheios de sabor. Suas notas mais características variam entre frutas negras (como mirtilos e amoras), violetas e azeitonas pretas, além de especiarias picantes, muitas vezes pimenta preta, às vezes branca. Com o tempo, esses aspectos aromáticas evoluem e costumam surgir notas terrosas ou mesmo de carne – alguns associam ao defumado, couro e trufas.
Obviamente, as condições de clima e solo da região vitivinícola, assim como o modo de produção, influenciam a paleta de aromas e sabores. De modo geral, os Syrah da Itália e da França tendem a apresentar mais acidez, pimenta preta e notas terrosas e herbáceas, enquanto que em países como Austrália, Estados Unidos, Chile e Argentina, por exemplo, nota-se uma fruta mais suculenta, notas florais e de especiarias.
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Embora não seja tolerante a climas extremamente quentes ou frios, a Syrah é naturalmente resistente a doenças e, por ter facilidade de adaptação a diversos microclimas, atualmente, é cultivada em diversos países, desde a nativa França até Austrália (onde é a principal variedade plantada), Estados Unidos (Washington State e Califórnia), África do Sul, Chile, Argentina, além de Itália (cultivada em pequena escala por todo o país e compondo bons blends com Sangiovese e Nero d’Avola), Espanha (usada em projetos na Rioja, por exemplo, e também como varietal em alguns casos esparsos), Portugal (vem tendo ótimos resultados no Alentejo), Marrocos, Tunísia, Líbano (entra no blend do Château Musar), Uruguai, Brasil (de modo restrito a alguns produtores específicos e também no Nordeste), Suíça (encontrada no Valais) e Nova Zelândia.
Enólogo da primeira vinícola a cultivar Syrah em solo alentejano, Hamilton Reis, da Cortes de Cima, afirma que a variedade é capaz de produzir vinhos de qualidade desde muito jovem, no terceiro ou quarto ano de produção do vinhedo. “A Syrah resulta em vinhos potentes, reativos e vivos, resguardados na elegância, equilíbrio e frescor. A acidez natural que a uva é capaz de preservar, aliado à qualidade dos seus taninos, entregam a esta casta um excelente potencial de evolução no tempo, em estágio de garrafa”, afirma.
Syrah em BordeauxApesar de majoritariamente plantada no vale do Rhône, durante algum tempo a Syrah também foi usada nos blends de Bordeaux para que estes ganhassem cor e estrutura e, com isso, eram descritos como “Hermitagés”. Alguns Châteaux como Lafite, Latour e Cos d’Estournel chegaram a ter quantidades significativas de Syrah cultivada em seus vinhedos. Um documento do negociante Nathaniel Johnston revela o quanto essa prática era comum: “O Lafitte 1795, que foi feito com Hermitage, foi o vinho que mais gostei de todos daquele ano”, escreveu. |
Na França, a Syrah é a estrela do vale do Rhône. Os vinhos feitos a partir dela são marcados por pimenta preta e apresentam diferenças de perfis e aromas de acordo com a sub-região onde são produzidos. A composição dos solos, as temperaturas e exposição solar das vinhas traduzem-se em diferenças notáveis.
Em Côte Rôtie, por exemplo, os Syrah costumam ter coloração menos intensa, porém são mais aromáticos, com traços florais e tostados, influência da pequena proporção da branca Viognier usada no blend típico do local e, diga-se de passagem, muito utilizado em outras partes do mundo. Exceção a esse estilo delicado, em Côte Rôtie, Guigal, um dos mais afamados viticultores dessa região, produz alguns Single Vineyards – La Mouline, La Landonne e La Turque – tão intensos quanto os Hermitages, às vezes ainda mais intensos.
Aliás, os Hermitage, com suas uvas vindas das encostas íngremes, têm taninos firmes e notas minerais e de groselhas e, ao evoluir, normalmente apresentam algo de carne, couro, chocolate e toques de tabaco e especiarias, via de regra, picantes. Já em Crozes-Hermitage, região mais plana – e um pouco mais ao norte – e também em St-Joseph, o perfil é de vinhos mais suculentos, com bom volume de boca, toques especiados mais evidentes e, por vezes, traços de café. Em Cornas, são produzidos os Syrah com maior robustez e cor, mas geralmente sem a mesma tensão e a mesma vibração dos Hermitage. Mais ao sul do Rhône, nos arredores de Châteauneuf-du-Pape, nas regiões de Gigondas e Côtes-du-Rhône-Villages, por exemplo, a Syrah deixa seu protagonismo de lado para assumir o papel de coadjuvante, com a função de conferir estrutura aos blends com Grenache e Mourvèdre.
Na Austrália, a Syrah é vedete e conhecida há muitas gerações como Shiraz. Aproximadamente um quarto dos vinhedos do país são de uva Shiraz e, certamente, está presente em muitos dos melhores rótulos australianos.
Embora a Syrah francesa e a Shiraz australiana sejam a mesma casta, o perfil dos vinhos certamente não é. Os australianos são, geralmente, mais cremosos, com aromas de groselha e cerejas negras, tendo muitas vezes notas de chocolate. Assim como na França, os estilos são, de certa forma, determinados pelo terroir.
Em Barossa Valley – com sua paisagem de vinhas velhas de baixo rendimento e muita concentração – tintos untuosos, com taninos sedosos e marcantes, destacam sabores de chocolate amargo, frutas vermelhas, menta e eucalipto. Pode-se dizer que a qualidade dos vinhos de Barossa Valley foi fundamental para a fama da Shiraz na Austrália. Já em McLaren Vale produz-se vinhos acolhedores e, ainda que de sabores intensos, mais fáceis de beber. Em Hunter Valley, os Shiraz são robustos, de coloração intensa, marcados por notas de couro, e longevos, por vezes sendo apelidados de “Hunter Hermitage”.
A cepa vem ganhando destaque nos Estados Unidos com os “Rhône Ranges”
Nos Estados Unidos, encontra-se Syrah principalmente para a composição de blends. Para os varietais, na Califórnia, uma curiosidade: quando, no rótulo, denominam-se “Syrah”, normalmente isso é sinônimo de influência francesa; quando se declaram “Shiraz”, o estilo é mais frutado, de influência australiana. Em Washington State, diferentes terroirs determinam diferentes perfis: em zonas mais quentes, onde a fruta amadurece mais cedo, os vinhos apresentam sabores de amoras pretas, cassis e ameixas, enquanto que, em zonas mais frias, destacam-se amoras vermelhas, cerejas e notas untuosas e defumadas que lembram bacon.
A Syrah adaptou-se bem também na África do Sul, especialmente em Paarl e Stellenbosch, onde são produzidos tintos densos e com a madeira tendo, geralmente, papel importante.
No Chile, a boa adaptação da Syrah ao local já lhe rendeu lugar cativo na vitivinicultura, dado à grande qualidade e diversidade de vinhos produzidos desde a costa até a cordilheira, e também de norte a sul. Novamente, dependendo da região do vinhedo, há variação de estilo do vinho. Em áreas mais quentes, como o Vale de Colchagua, via de regra, os Syrah são robustos e suculentos. Já em zonas mais frias, como Vale de San Antonio, Elqui e Limarí, produzem-se tintos mais aromáticos, complexos e com notas de especiarias picantes. Por isso, atualmente diversas vinícolas têm buscado cultivar suas uvas em direção à cordilheira, zonas mais altas e mais frias.
Ainda na América do Sul, na Argentina, a Syrah era usada somente na composição de blends. Hoje em dia, existem alguns varietais, como, por exemplo, os produzidos em San Juan e na parte leste de Mendoza, que costuma ter caráter mais exuberante e frutado. Já em regiões mais frias, como o vale do Uco, tendem a ser mais estruturados.
No Brasil, há vinhedos esparsos de Syrah nas diversas regiões produtoras, desde a Campanha Gaúcha, Vale dos Vinhedos até o Nordeste. Aliás, os tintos brasileiros que levam Syrah que mais se destacam são feitos nesta última região. Entretanto, a presença da Syrah em nosso país ainda é tímida e os melhores resultados estão restritos a poucos produtores.
HarmonizaçãoO caráter encorpado da Syrah faz com que os vinhos produzidos com ela harmonizem com pratos repletos de sabor, desde carne de caça até filés, churrasco e assados em geral. Entretanto, havendo diferentes perfis de tintos Syrah sendo produzidos no mundo, obviamente, a casta não se limita a casar bem com carnes. Os rótulos marcados por notas mais frutadas crescem na companhia de aves como peru e galinha d’Angola, além de cordeiro. Já os Syrah de corpo mais leve não fazem feio ao lado de pratos das culinárias indiana, chinesa e tailandesa, por exemplo. |