A história por trás da lista de Bordeaux, a mais famosa classificação de vinhos do mundo
por Bruna Heer
É por meio das classificações dos seus vinhos que se pode compreender melhor a história de Bordeaux, já que mais do que meras listas que enumeram as melhores propriedades vinícolas, elas dizem respeito às origens do vinho na região e do comércio que fez tais listas se perpetuarem.
A principal classificação de Bordeaux, conhecida como "Classification officielle des vins de Bordeaux", a primeira feita oficialmente, no Médoc, a pedido do imperador Napoleão III à Câmara de Comércio de Bordeaux como contribuição a Exposition Universelle de Paris de 1855.
Vale lembrar que durante muito tempo, os vinhos das diversas propriedades eram vendidos em barris sem identificação, no máximo com a indicação da cidade ou região de onde vinham. E os produtores bordaleses foram uns dos primeiros a entender a importância do marketing em torno de seus nomes. Somente no século XVII surgiu o conceito de valorizar os vinhos de determinado produtor.
O Haut-Brion, por exemplo, foi o primeiro a vender seu produto separadamente. O conceito de terroir se fazia valer enfim.
Com o passar do tempo, o paladar dos ingleses - um dos mercados-chave para os franceses - foi incrementando e eles se tornaram mais precisos em relação ao local em que os vinhos de melhor qualidade eram produzidos. De uma visão geral de Bordeaux, passaram a focar na sub-região de Médoc e, mais tarde, a levar em conta também o produtor em questão.
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E neste quesito, quatro se destacavam: Château Margaux, Château Latour e Château Lafite e Château Haut-Brion (o único que não ficava no Médoc, mas sim em Graves, e que foi o primeiro a fazer fama no mercado inglês). Por conta do altíssimo nível destes vinhos - e também seus preços descomunais - eles ficaram conhecidos como vinhos de "primeira propriedade".
Quatro anos depois de os ingleses organizarem a "The Great Exhibition", Napoleão III ordeneou sua "Exposition Universelle"
Luis Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão, foi eleito presidente da França em 1848. Em um país tumultuado, quatro anos depois, ele, como seu tio, deu um golpe de estado e se auto-proclamou imperador da França.
Napoleão III, apaixonado pelo neoclassicismo, logo pretendeu restaurar a grandiosidade de seu país no cenário mundial e, além de entrar em guerras (apesar de pregar a paz), promoveu diversas feiras e salões ditos mundiais ou universais em que se reuniam cientistas, pensadores, artistas que apresentavam as principais obras ou modernidades criadas no planeta.
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Três anos depois de restaurar o império francês e quatro depois de os ingleses terem organizado, em Londres, "The Great Exhibition", que inaugurou o circuito de grandes feiras mundiais, Napoleão III ordenou que fosse feita sua "Exposition Universelle" da agricultura, indústria e artes, organizada na famosa avenida Champs-Élysées, em uma Paris que estava sendo remodelada também a pedido do imperador.
Durante seu reinado, ele ainda promoveu mais uma grande feira - que se perpetuaram durante todo o século XX - em 1867.
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Outras propriedades, então, começaram a notar como as primeiras estavam dando certo financeiramente e como valia o esforço de se empenhar na qualidade do vinho. Elas conseguiram criar um reconhecimento similar e ficaram conhecidas como "segundas propriedades" - afinal, seus preços não eram tão altos quanto os das chamadas primeiras propriedades, e, além disso, tinham valores parecidos, o que ajudou a criar uma homogeneidade.
Em 1787, já se tinha bem definido uma terceira denominação, das "terceiras propriedades". O sucesso comercial dessa classificação fez com que fosse criada ainda uma quarta classe. Por volta de 1850, já havia cinco classes bem definidas nessa hierarquia comercial, compreendendo por volta de 60 produtores.
Em meados de 1820, com as classificações em alta e diversos livros a respeito disso sendo publicados, os apreciadores de vinho passaram a ter uma ideia muito mais ampla do que significava tudo aquilo. Não era somente a qualidade da terra que estava sendo classificada, mas também a propriedade, o que, logicamente, incluía a mão humana.
Todo este frenesi em torno da hierarquização dos vinhos trouxe o assunto para perto do consumidor, que passou a se interessar mais por vinhos de qualidade e, consequentemente, por Bordeaux.
Quem também cresceu com a categorização dos vinhos de Bordeaux foram os comerciantes, produtores e corretores envolvidos nesse mercado. Diversos livros foram publicados e muitos deles apresentavam a lista com a classificação "extra-oficial" dos vinhos de Bordeaux. É o caso de Andre Jullien, que publicou em 1816 a primeira edição do "Topographie de Tous Les Vignobles Connus".
No livro, fez menção do que viria a ser a caracterização convencional dos Premiers Crus e listou sete Deuxièmes Crus (as "segundas propriedades"), além de expor as comunas da região seguindo o critério de qualidade.
Mais tarde, em 1824, foi a vez do négociant alemão Wilhelm Franck levar a categorização adiante: levantou um total de 408 propriedades em 41 comunas no Médoc e estabeleceu quatro classes (ou crus). Depois dos Premiers Crus - Margaux, Latour, Lafite e Haut-Brion - vinham apenas quatro Deuxièmes, oito Troisièmes e 18 Quatrièmes.
Quatro anos mais tarde, quem se inspirou em Franck foi o corretor Monsieur Paguierre, que seguiu o négociant quase que ao pé da letra e adicionou algumas recomendações aos produtores sobre como fazer o vinho adequado para cada tipo de mercado estrangeiro.
Ainda abordando o assunto, a publicação de maior interesse do público, e que hoje se tornou uma espécie de "Bíblia de Bordeaux", foi o livro do professor inglês Charles Cocks e do livreiro francês Michel Féret. Cocks publicou a primeira obra em inglês, em 1846, sob o título de "Bordeaux, Its wines and the Claret Country".
Quatro anos mais tarde, foi a vez de Féret, que antes de publicar o seu em francês, revisou a de Cocks e fez algumas modificações.
O livro incluía a mais completa classificação de vinhos até então e era baseada na última lista revisada de Franck, além de conter acréscimos dos autores. Já foram publicadas 14 edições do livro, cada uma mais completa que a outra - hoje há quase 8 mil propriedades listadas.
Finalmente, em 1855, ocorre a Exposição Universal de Paris, que reunia itens de toda a França e do mundo. Para a ocasião, Napoleão III pediu a cada região vinícola que estabelecesse uma classificação de seus vinhos. Fica então confiado à Câmara de Comércio e de Indústria (CCI) de Bordeaux o processo envolvendo os vinhos de lá.
O sistema de ranqueamento dos vinhos de Bordeaux foi feito pelos negociantes e foi baseado em resultados comerciais dos vinhos de cada propriedade durante longos períodos de tempo e não na qualidade do vinho apresentado na Exposição Universal ou mesmo da safra anterior - tanto que muitos sequer enviaram vinhos para serem provados na feira.
O que contava era a tradição, a reputação construída em torno dos valores obtidos pelos produtos durante anos. Assim, as categorias foram definidas por faixas de preço, o que fez com que os consumidores já tivessem uma ideia dos valores que seriam cobrados pelos vinhos de cada propriedade.
Apenas seis garrafas de cada propriedade seriam transportadas para a capital para degustação, o que impediria os visitantes de prová-los. Então, para tornar a exibição mais interessante e afirmar a qualidade superior dos vinhos, foi solicitado um mapa da região. Como parte dele, apresentou-se uma lista dos vinhos de Bordeaux, elaborada a partir de um histórico de cotações e reputação dos châteaux ao longo de um extenso período.
A classificação, na época, contava com 58 propriedades, classificadas em Premiers Crus, Deuxièmes Crus, Troisièmes Crus, Quatrièmes Crus e Cinquièmes Crus.
Classificações não oficiais já existiam muito antes de 1855. Thomas Jefferson, por exemplo, já havia feito uma lista própria quando foi embaixador na França.
Classificações "não oficiais" dos principais vinhos de Bordeaux sempre surgiram antes da lista apresentada em 1855. Muitos grandes enófilos da história fizeram suas próprias classificações dos melhores produtores e um dos mais célebres a citar os grandes Châteaux em seus apontamentos foi Thomas Jefferson, quando foi embaixador norte-americano na França em 1787.
O futuro presidente dos Estados Unidos ficou fascinado com os vinhos ao viver no país europeu. Ao visitar Bordeaux, fez uma lista dos produtos que mais gostou e ela continha vários dos nomes que ficaram eternizados na classificação de 1855.
Desde então, a lista sofreu pouquíssimas alterações. A primeira ocorreu um ano após a classificação, em 1856, quando o Château Cantemerle entrou para os Cinquièmes Crus. Em 1970, houve a eliminação do Château Dubignon, vendido e incorporado ao Château Malescot St. Exupéry.
Depois disso, em 1973, a mais notória inclusão: Château Mouton Rothschild, até então um Deuxièmes Cru, conseguiu, devido à influência política e econômica de seu proprietário, entrar para o seleto grupo dos Premiers Crus.
A classificação de 1855 alcançou uma autoridade e longevidade, e, mesmo com outras versões - efêmeras -, apenas essa lista se manteve válida até hoje. Atualmente, ela conta com 61 propriedades.
Com a classificação - e na verdade, por causa dela - as décadas de 1860 e 1870 ganharam o nome de "A Idade de Ouro", pois os produtores obtiveram lucros incríveis. A época em si não era nada promissora: o oídio, doença provocada por um fungo, assolava a região e trazia escassez aos vinhos, o que automaticamente aumentava seus preços.
A construção de uma ferrovia, que ligava Bordeaux à Paris e fora projetada como um escape para o porto marítimo, não foi muito útil para a região, mas, mesmo assim, colaborou para os mercados de Paris e cidades da Alemanha e Bélgica.
O efeito mais interessante dessa ligação foi o aumento do número de parisienses que iam visitar Bordeaux. Muitos deles, inclusive, após conhecer a região, se interessaram em comprar terras por ali. Bordeaux se tornou ainda mais glamorosa, a ponto de muitos chamarem a região de uma "extensão da Champs-Élysées", em menção à prestigiada avenida de Paris.
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