Por que Josko Gravner optou por deixar de lado tudo o que havia aprendido e conquistado, e passou a produzir vinhos tão diferentes e controversos?
por Alexandre Lalas
Josko Gravner em frente às ânforas que haviam acabado de chegar, no ano 2000
Quando estive no Friuli em 2013, não estava prevista uma visita ao produtor Josko Gravner, famoso pelos vinhos de maceração longa e pelas ânforas de terracota com as quais faz os seus néctares. Apaixonado pelo estilo do vinhateiro, aproveitei um dia de folga e agendei uma visita aos seus vinhedos e à adega. Eu até já o tinha entrevistado por e-mail para matérias escritas aqui mesmo em ADEGA. Mas, sabendo que o produtor tem certa reticência a receber visitantes, escrevi uma mensagem carinhosa e usei a ajuda de amigos em comum para marcar o encontro. Deu certo e lá estava eu, no lugar e hora marcados, com uma quase incontrolável euforia.
Ele me recebeu vestindo um macacão de frentista de posto de gasolina dos anos 1970. Feitas as apresentações de praxe, embarquei junto com ele em sua picape para visitar as vinhas, em especial uma na Eslovênia, paixão do produtor. Era início de novembro. Todos já tinham terminado a colheita de tintos. Mas Josko estava começando a pensar na possibilidade de colher nos próximos dias a Ribolla Gialla destes vinhedos.
“O vinho é uma questão de filosofia e não de enologia”, já foi me falando de cara. E durante a visita, ele falou muito de filosofia. Mas falou também da terra, de vinhos, de clima, dos solos. Falou da vida em geral. Àquela altura, ele ainda estava bastante machucado devido à perda do filho, seguidor dos passos do pai, em um estúpido acidente automobilístico. E com um clima contaminado pela emoção, chorei diversas vezes naquele encontro, ou melhor dizendo, naquela verdadeira aula que estava tendo a chance de assistir. Não por acaso, relutei demais em escrever sobre aquele encontro, aquela visita, aquela tarde decisiva na minha maneira de encarar os vinhos. A humildade e a paixão com que Josko Gravner encara a terra que é mãe dos vinhos que ele produz é contagiante. E é impossível ficar indiferente a uma visita assim.
A adega foi remodelada para receber as ânforas, com capacidade de dois mil litros, enterradas no chão do subsolo
Gravner gostou tanto do resultado das ânforas que jogou fora todas as barricas
A razão pela qual decidi escrever sobre Josko Gravner é que tive a chance de me reencontrar com em 2015. O produtor fez uma visita ao Brasil acompanhado da filha, a bela Mateja, uma das responsáveis pela decisão do pai em abandonar o casulo em que vivia. E ficou claro para todos que tiveram a chance e o privilégio de conversar com o produtor que, por trás da casca de eremita exótico, existe um homem humilde, generoso e genial. Coisa que os vinhos dele já afirmavam há tempos. Mas nem sempre Josko Gravner se escondia atrás de uma imagem. E para tanto, é necessário conhecer um pouco a história do homem por trás do vinho.
Quando chegou da faculdade, recém-formado em enologia, Josko foi trabalhar com o pai, na mesma região onde ainda hoje estão os vinhedos da família. Com a certeza indissolúvel de que sabia tudo, coisa que só os jovens conseguem ter, convenceu o pai a seguir o caminho das tendências que guiavam os vinhos daquela época. As uvas contaminadas pela podridão nobre, por exemplo, eram descartadas, apesar dos protestos do pai, que apelava a Josko que as provasse e visse como eram as mais saborosas. Mas a impetuosidade e o saber teórico do filho levou a melhor. Até por que fazer vinho parece ter sido um dom nato. Tanto que não demorou para que o rapaz firmasse o nome na galeria dos grandes do vinho italiano, colecionando prêmios, notas altas e reconhecimento da crítica especializada, apaixonada pelo estilo grandioso dos brancos (feitos com vinhas velhas de Chardonnay e Sauvignon Blanc) e dos tintos, em especial o Merlot.
Até que, no final dos anos 1990, quando o nome Josko Gravner era sinônimo de vinhos espetaculares do Friuli e a vinícola se firmava como uma das mais premiadas da Itália, o produtor recebeu um convite para viajar aos Estados Unidos, junto com outros vinhateiros da região. Josko foi. E o que viu por lá mudou tudo o que havia na cabeça e no coração do já não tão jovem assim enólogo/viticultor. Ele visitou vinícolas que, com orgulho, mostravam como usar a tecnologia para fabricar aromas e direcionar vinhos a este ou aquele mercado. Viu como se fazia para concentrar o mosto e conseguir notas mais altas de críticos especializados. Viu como se mexia nisso, como se interferia naquilo. E percebeu que a uva, a matéria-prima, a razão de ser de um vinho, era jogada para escanteio, adotando um papel de mera coadjuvante, de instrumento do homem para fabricar aquilo que queria vender. E ele não gostou nada do que viu.
“O vinho é uma questão de filosofia e não de enologia”, acredita Gravner
Quando chegou em casa, ao ser perguntado pela esposa sobre como havia sido a viagem, desabafou: “Aprendi tudo o que não quero fazer”, disse. E começou a estudar, pesquisar. Leu sobre a origem do vinho. Foi visitar a Geórgia e conheceu ânforas onde na antiguidade se fazia vinho. Comprou uma para experimentar. Usou na vindima seguinte. E gostou tanto que jogou fora todas as barricas francesas de que dispunha e remodelou a adega para receber as novas aquisições: ânforas com capacidade de dois mil litros, que enterrou no chão do subsolo da adega.
O passo seguinte foi dado no campo. Josko arrancou as vinhas de mais de 60 anos de Chardonnay que tinha. E plantou Ribolla Gialla, uva ancestral e nativa do Friuli. Foi chamado de maluco. Ele não se importou. Sabia o que estava fazendo. Tinha a exata noção de que estava apontando o caminho da modernidade justamente ao olhar para trás. Passou a adotar uma longa maceração dos vinhos brancos (hoje ficam quase sete meses na ânfora). Até que, em 2001, sentiu que o vinho estava pronto. E fez o primeiro vinho em ânfora, lançado apenas sete anos depois.
Josko Gravner arrancou vinhas de mais de 60 anos de Chardonnay e plantou Ribolla Gialla, uva ancestral e nativa do Friuli. Foi chamado de maluco
Uma viagem aos Estados Unidos mudou por completo sua maneira de abordar a enologia
A crítica que antes o exaltava, desprezou o trabalho. Foi chamado de decadente para baixo. Os vinhos foram considerados oxidados, estragados. A cor, um âmbar brilhante, longe daquele amarelo-ouro do Chardonnay de Josko, já era motivo para discórdia. E o gosto então, único, não foi entendido. Mas o produtor não estava nem aí para a crítica. Tinha certeza do caminho escolhido. Sem o uso de nenhum tipo de produto químico, foi cada vez dando mais autonomia à terra para que ela sim expressasse o ano, o lugar, a uva. Deixou o canal aberto com a natureza. E se beneficiou disso como ninguém.
Aos poucos, os vinhos foram quebrando as barreiras. E Josko melhorando o que já era bom. Passou a colher mais tarde, e a usar justamente as uvas atacadas pela Botrytis, nos anos em que ela aparece (como o fabuloso 2005), as mesmas que o pai tanto gostava e que o jovem enólogo, que carregava todas as certezas do mundo, desprezava. Acertou o tempo de maceração e de estágio em enormes barris de madeira velha. Arrancou o resto que não era Ribolla Gialla ou Pinolo (uva tinta também do Friuli). Definiu a produtividade de cada planta, de cada vinhedo. Recentemente, chegou à conclusão de que nem precisa mais desengaçar a uva, jogada na ânfora inteira no cacho, tal a uniformidade da maturação do fruto, do engaço, do caroço.
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O estilo de Josko, antes incompreendido, foi imitado. São muitos os produtores fora do Friuli que passaram a fazer vinhos brancos de maceração longa. A crítica, antes refratária às ideias do produtor, agora as valorizam. E até deram nome a esse estilo de vinho: Orange Wines (vinhos laranja). Nome, por sinal, que desagrada em cheio ao produtor. “Meus vinhos não tem nada de laranja, são de cor âmbar. Um vinho laranja é um vinho estragado”, costuma reclamar Josko.
Gravner tem apontado o caminho da modernidade justamente ao olhar para o passado
Mas o nome pegou, e o estilo espalhou-se pelo mundo. Há vinhos do tipo feitos em Portugal, na França, na Áustria, no Chile, nos Estados Unidos, até no Brasil. Sem falar na Itália, onde mesmo fora do Friuli muitos produtores abraçaram o estilo. Mas embora a ideia tenha sido disseminada e copiada mundo afora, não é apenas o homem quem faz o vinho. Na verdade, talvez o ser humano seja apenas um instrumento para que a natureza chegue o mais intacta possível até a taça do consumidor. E nesse quesito, Josko Gravner segue único. “A água da nascente é sempre a mais pura. No caminho, o homem contamina esta água com todas as bobagens e decisões erradas que toma. O que tento fazer é manter os meus vinhos o mais próximo possível desta nascente, que é a uva e a terra de onde ela vem”. Josko Gravner, num dia ensolarado de novembro de 2013.
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