Os rótulos preferidos do mais famoso detetive da literatura
por Arnaldo Grizzo
No filme O Cão dos Baskervilles (1981), da série de aventuras escritas por Conan Doyle para Sherlock Holmes e seu assistente, Dr. Watson, a dupla saboreia vinhos enquanto desvenda crimes
Sherlock Holmes seria um connoisseur? No 'cânone' sherlockiano, o vinho aparece por diversas vezes, especialmente quando o detetive e seu parceiro inseparável, o Dr. Watson, estão prestes a se embrenhar em uma trama, ou então, para retomar o fôlego antes de entrar em ação.
Difícil negar que Holmes não tinha gostos refinados. Nos livros e contos escritos por Arthur Conan Doyle, o personagem é retratado levando uma vida bastante simples em seus aposentos de Baker Street, contudo, muitas vezes surpreendia seu parceiro ao solicitar bons vinhos para acompanhar refeições igualmente imponentes. Ao que parece, mais do que conhecer “bons vinhos”, Holmes também sabia como harmonizá-los. Ou seja, suas faculdades mentais não se limitavam a compreender os diferentes tipos de cinzas produzidas pelos diversos tipos de fumo para assim poder identificar um assassino ou coisas do gênero, mas ainda lhe proporcionavam boas experiências enogastronômicas.
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Em sua primeira aparição, em 1887, ou seja, há 130 anos, no livro “Um estudo em vermelho”, logo ficamos sabendo que o detetive é uma pessoa compulsiva e tem alguns vícios. Sim, Holmes era muito mais chegado às drogas, especialmente à cocaína e à morfina (que, segundo ele, era a única maneira de dar à sua mente o ritmo de que necessitava quando não estava investigando um caso), do que à bebida.
No entanto, no segundo livro de Doyle sobre o detetive, “O signo dos quatro”, percebemos seu bom gosto. No começo da história, porém, quem parece apreciar bons vinhos é Watson, que releva ter tomado um Beaune no almoço. O médico, aliás, diz que, sob efeito do vinho, repreendeu seu companheiro por ele estar se drogando novamente. Mais à frente, um dos personagens oferece Chianti ou Tokay ao detetive e seu parceiro, porém não recebe resposta.
Mas Holmes logo apela para o vinho. Pouco antes de ele, seu parceiro e um agente da Scotland Yard partirem numa perseguição pelo rio Tâmisa, Sherlock sugere que todos jantem. “Tenho ostras e um par de tetrazes (tipo de galinhola), com algumas opções de vinho branco”, revela o detetive. Esta passagem sugere o conhecimento de vinhos e de suas harmonizações, já que ostras e aves pedem brancos para acompanhar. Logo em seguida, os três ainda tragam uma garrafa de Vinho do Porto. Holmes, por sinal, serve-se da garrafa e enche os copos “até a borda”.
No conto “A inquilina de rosto coberto”, tem-se uma nova demonstração do gosto refinado para rótulos e das escolhas de combinações de Sherlock quando ele diz a Watson que pegue uma garrafa de Montrachet – um dos vinhos brancos mais caros e famosos do mundo – para eles acompanharem uma perdiz. Com isso, recobrariam as energias.
Um cartão com calendário americano dos anos 1940 mostra a figura do detetive com um copo de vinho tinto na mão, e sugere harmonizações para a bebida na lente de Sherlock
Os estudiosos das histórias Sherlock Holmes costumam afirmar que seus vinhos preferidos eram Porto e clarete (nome que os ingleses davam para os vinhos de Bordeaux na época e ainda hoje é muito utilizado) baseados nas principais passagens e citações dos livros e contos. Pois bem, isso nada mais prova que o detetive era um típico inglês de seu tempo, pois, naquela época (final do século XIX e começo do século XX) os principais vinhos no mercado britânico eram exatamente esses. Bordeaux e Porto fizeram parte dos hábitos de consumo dos ingleses por décadas.
Na escrita de Doyle, tanto Bordeaux quanto Porto eram citados como bebidas relativamente corriqueiras. No conto “A tragédia do Glória Scott”, que muitos têm como sendo o primeiro mistério desvendado por Holmes e que deu origem à sua carreira de detetive, ele aparece tomando Porto com seu colega de faculdade, Vitor Trevor, enquanto este lhe conta sobre sua angústia em relação à situação do pai. O filho até então não fazia ideia de que o pai era vítima de um chantagista, que acabou desmascarado por Holmes. Já no “O homem que andava de quatro”, mais uma vez o Porto serve de refúgio para o detetive e seu parceiro. Em meio à investigação do caso, eles se hospedam em uma estalagem que Holmes afirma servir um Vinho do Porto “acima do medíocre”.
Estudiosos da obra e da trajetória do famoso personagem dizem que os romances deixam clara sua predileção pelos vinhos de Bordeaux, e as borras no fundo de uma taça foram pista importante para a resolução de um de seus inúmeros casos
Todavia, o clarete também serve para “matar o tempo” entre uma dedução e outra do detetive. Em “A caixa de papelão”, Holmes e Watson passam “uma hora” bebendo uma garrafa de Bordeaux, antes de entrar novamente em ação. Já em “O nobre solteirão”, o detetive causa espanto em seu parceiro ao comprar uma caixa que continha uma lauta refeição. “Um par de galinhas d’angola frias, um faisão, uma torta de patê de foie gras, com um grupo de garrafas velhas e cobertas de teias de aranha”. A crítica de vinhos e estudiosa de Sherlock Holmes, Patricia Guy sugere (em seu livro “Bacchus at Baker Street”) que o detetive tenha comprado um Corton 1878 para acompanhar a perdiz, um Château Haut Brion 1811 para a galinha d’angola, um Imperial Tokay 1790 para o foie gras, um Champagne Perrier-Jouët 1874 e um Madeira Bual 1789. Haja imaginação.
Nos contos de Doyle, o vinho quase sempre aparece em momentos de intervalo e descontração de Sherlock Holmes e Watson. Em apenas um caso, “A granja da abadia”, ele tem papel central na elucidação de um assassinato. Ao analisar três copos de vinho deixados no local do crime, o detetive chega à conclusão de que os criminosos “armaram” uma cena para tentar confundir a polícia. Para espanto de Watson, Holmes percebe que, em um dos copos, há muito mais borra do que os outros e isso lhe sugere que apenas duas pessoas beberam e despejaram a borra no terceiro copo na tentativa de despistar os investigadores.
Em outro caso, de “Vamberry, o negociante de vinhos” talvez o vinho tenha sido protagonista, mas nunca saberemos, pois ele é apenas citado de passagem por Watson, juntamente a outros tantos, no famoso conto “O ritual Musgrave”.
Por fim, o apogeu de Sherlock Holmes talvez tenha sido mesmo com uma garrafa de Imperial Tokay. Este vinho mítico era produzido em um vinhedo particular e deixou de existir, tornando-se uma lenda. É com ele que o detetive se despede dos fãs em sua última aventura, no conto “Seu último adeus”. A narrativa se passa em 1914, pouco antes de a I Guerra Mundial ser iniciada. Nela, descobre-se que Holmes trabalhou como agente secreto do governo britânico durante o combate.
A narrativa mostra o detetive e seu parceiro apanhando um espião alemão em sua casa. Com o inimigo sob seu domínio, Sherlock pede a Watson que se sirva mais um copo da garrafa de Imperial Tokay. “É um vinho excepcional”, atesta Holmes, afirmando que aquele exemplar havia vindo diretamente da adega do imperador austro-húngaro, Francisco José (tio de Francisco Ferdinando, cujo assassinato precipitou o início da guerra), no palácio Schoenbrunn. Para poder apreciar plenamente o vinho, Holmes ainda pede ao seu parceiro que abra a janela para dissipar o cheiro de clorofórmio (que ele usou para sedar o espião alemão), pois ele não ajudaria no paladar.
Mais uma prova de que, se tivesse se dedicado aos vinhos, Sherlock Holmes provavelmente teria sido o maior degustador da literatura mundial, um mito maior do que Robert Parker.