Entre cidades históricas e cantinas modernas, o espumante da uva Glera floresce nas colinas do Vêneto
por Sílvia Mascella Rosa
O viajante que chega na pequena estação de trem de Conegliano avista, através da avenida em frente à estação, a “Scalinata degli Alpini”, uma escadaria que faz a travessia simbólica deste século, movido por informação e energia elétrica, de volta para o século XV, época em que a cidade cresceu e floresceu. Conegliano é uma das portas de entrada para o mundo do espumante Prosecco no norte da Itália, por meio de suas arcadas que misturam o medieval e o renascentista.
A outra porta fica a oeste, na cidade de Valdobbiadene, distante apenas 34 km de Conegliano. Ambas as cidades, localizadas na província de Treviso – na região do Vêneto –, compõem a base de um triângulo, que sobe em direção aos Alpes, formado por colinas de vinhedos que delimitam a DOCG (Denominação de Origem Controlada e Garantida) de Prosecco.
A uva da região é a Glera (que ocupa quase 90% dos parreirais). Até 2009, essa casta era conhecida como Prosecco, mas a confusão gerada entre produto e matéria-prima fez com que o conselho regulador da denominação de origem local optasse por utilizar o nome histórico da cepa para marcar a diferença. Foi nesse mesmo ano que a DOCG foi estabelecida, delimitando uma região dentro do Vêneto que já era DOC desde 1969. O nome dos vinhos produzidos nessa zona passou a ser Prosecco Superiore.
Área de produção de Prosecco Superiore entre Conegliano e Valdobbiadene
No Brasil, o espumante Prosecco é conhecido como a bebida extra-oficial dos casamentos, mas, na maioria dos casos, o que ocupa as taças são vinhos genéricos, quase nada representativos da elegância obtida na DOCG.
Giancarlo Vetorello é o diretor do consórcio regulador da região e conta que a história do vinho branco nessas colinas tem raízes no Império Romano. Porém, eles preferem datar o início de uma produção mais direcionada no ano de 1876, quando foi fundada a Scuola Enologica de Conegliano, a mais antiga de toda a Itália. “Essa escola deu forma ao espumante como ele é hoje, pois, até então, o método tradicional utilizado em Champagne era empregado aqui também. Mas, com as pesquisas feitas na instituição por Federicco Martinotti (o nome italiano por trás do método Charmat) para a utilização de tanques de aço inoxidável com controle de pressão para a segunda fermentação, chegou-se à conclusão de que esse método era o melhor para as aromáticas uvas da região”, explica Vetorello.
O Charmat é, desde então, o método oficial para a preparação dos espumantes Prosecco, seja nas empresas mais comerciais ou nas mais elegantes, variando apenas o tempo de contato das leveduras com o líquido (Charmat longo) e de onde provêm as uvas – e, nesse caso, elegância é também sinônimo de altos investimentos.
Leia mais:
+ Como funciona o licor de tiragem para espumantes?
+ Espumantes produzidos com o método champenoise
+ A diferença entre o método tradicional e método Charmat
Um passeio pelas colinas que ligam as duas principais cidades, seja no inverno – quando é possível ver com clareza as diferenças de altitude dos vinhedos e as montanhas Dolomitas cobertas de neve ao fundo –, seja no verão – quando as parreiras formam um cobertor verde sobre as montanhas –, é possível perceber que a influência do relevo e do posicionamento em direção ao sol fazem com que os vinhos sejam únicos e distintos.
Um terroir se destaca entre essas altas colinas. Chama-se Cartizze e é a área mais nobre entre todos os vinhedos de Prosecco Superiore. “São apenas 106 hectares de vinhedos, divididos entre 160 proprietários”, conta Alberto Ruggeri, administrador e herdeiro da vinícola Le Colture, que possui 1,5 hectare na região.
A vinícola da família de Ruggeri divide um espaço exíguo com outros importantes produtores, como a Col Vetoraz, a Bisol, a Case Bianche e a Adami, nesse terreno super valorizado, onde um hectare pode chegar a custar mais de um milhão de euros. “Mas não há terrenos à venda”, conta Desiderio Bisol, enólogo da empresa familiar, uma das mais modernas e competitivas da região. Ele explica que os donos dessas terras passam as pequenas áreas como uma preciosa herança para seus descendentes e, como o terreno vale muito e é garantia de sobrevivência para muitas famílias, ninguém se desfaz dele.
Diante desse cenário, o desafio para muitos donos de vinícolas é comprar as melhores uvas desses pequenos proprietários, uma vez que é quase impossível ampliar a área de vinhedos. “A DOCG adotou regras muito restritivas, que objetivam fazer da área delimitada do Prosecco Superiore a versão italiana de Champagne. Assim, investir em um novo vinhedo significa apostar alto (e caro)”, conta Lionello Lot, enólogo da Case Bianche, que possui uma linda propriedade nas colinas entre Susegana e Pieve de Soligo, dentro da DOCG.
A vinícola Adami fica localizada numa bela propriedade perto da comuna de Vidor – de lá se avistam vinhedos por toda a parte –, mas é necessário ir em um veículo com tração especial até o vinhedo Giardino, uma propriedade especial que produz as uvas Glera para o Single Vineyard da empresa. A vista do mirante é de tirar o fôlego. Uma sequência de declives profundos e pequenas colinas cobertas de vinhedos fazem pensar na dificuldade que é manejar e fazer a colheita nesse local.
Enrico Valleferro é um dos diretores da empresa, além de ser um importante sommelier italiano. Ele explica que nessa região apenas a população local participa da colheita, uma vez que é necessário estar habituado ao relevo acentuado e ao tipo de cobertura que a parreira faz: “Essa vinha é muito vigorosa, necessitando de podas constantes durante o amadurecimento e de muito cuidado no manejo. Na época da colheita (em geral em meados de setembro), as estreitas estradas ficam intransitáveis para os carros, por conta dos galhos das parreiras”.
Quando bem feitos, espumantes retêm “aromas de juventude”
Todos os processos, no campo ou na cantina, visam preservar o frescor e a acidez das uvas. “Quanto mais fresco, melhor”, diz Valleferro com um sorriso ao servir uma taça que, evidenciando as diferenças dos grandes espumantes de Prosecco, não é a tradicional flüte de Champagne e de outros espumantes. “Nos Prosecco Superiore, as borbulhas devem ser melhores no palato do que nos olhos, e as taças mais arredondadas também auxiliam os potentes aromas frutados a alcançarem o nariz, enquanto que o gole fica automaticamente maior, espalhando melhor o líquido na boca”, ensina o diretor da Adami.
A propriedade da vinícola Col Vetoraz desfruta de uma vista privilegiada dos vinhedos de Cartizze, de um ponto onde as vinhas parecem formar um enorme anfiteatro. Francisco Miotto, um dos diretores da empresa, conta que ela se estabeleceu na região em 1938, mas durante décadas vinificou as uvas para outros produtores até que, em 1992, começou com seus vinhos próprios.
Nessa área tão especial, a vinícola possui 4 hectares, além de vigiar de perto os 66 produtores dos quais compra uvas. “Todos os nossos produtos estão na DOCG e, por isso, precisamos zelar pela qualidade dessa matéria-prima. Por exemplo, o antifúngico que pode ser utilizado em uvas para espumantes se dispersa melhor quando o vinho é refermentado no método tradicional, mas, quando usamos o método Charmat, ele pode deixar resíduos. Então, esse controle é essencial para fazermos um vinho de qualidade”, aponta Miotto.
A Col Vetoraz vende um milhão de garrafas de Prosecco Superiore por ano, entre rótulos Brut (açúcar residual até 12 gramas por litro), Extra Dry (entre 12 e 20 gramas de açúcar residual) e Dry (entre 18 e 33 gramas de açúcar por litro), que são os estilos nos quais são feitos os melhores espumantes.
O que mais conquista os paladares do mundo é o fato de que os Proseccos são espumantes de extrema delicadeza e frescor e que, quando bem feitos, retêm “aromas de juventude” – como afirmam os enólogos da região –, combinados com frutado e crocância excepcional, além de um aparente dulçor final que dá – para muitas pessoas – a impressão de que ele é mais doce do que é na realidade. “Desde que contenham um mínimo de 85% da uva Glera, os Prosecco Superiore podem levar pequenas quantidades de outras uvas, como a Verdiso, a Bianchetta e até a Pinot Noir e Chardonnay, que entra em alguns cortes, como em nosso rosé, por exemplo”, explica Desiderio Bisol.
Visitar a região de Prosecco é perceber como os italianos conseguem unir uma história rica com a contemporaneidade de uma produção moderna e tecnológica, respeitando o terroir, mas investindo em uma imagem renovada para seus produtos e, melhor do que tudo, provando espumantes que fogem do óbvio, que na taça não são o diminutivo popularmente conhecido (“Prosequinho”), mas, sim, vinhos plurais, de extrema elegância e frescor. Como bem diz a frase do conselho regulador da região: “Conegliano Valdobbiadene, onde o Prosecco é superior”.
Adami Vigneto Giardino Rive de Colbertado 2010 - AD 90 pts
Bisol Cartizze Dry DOCG - AD 90 pts