Escola do vinho

Qual levedura usar na fermentação de um vinho?

Enólogos do mundo todo questionam se é melhor usar leveduras indígenas ou selecionadas

por Alexandre Lalas

Leveduras indígenas ou selecionadas? Jogue esta pergunta em uma roda de enófilos mais antenados para ver o que acontece. É batata. Em questão de segundos, fermentará uma discussão interminável. De um lado, alguns dirão que apenas o uso de leveduras nativas pode fazer com que o vinho represente de forma fidedigna o lugar de onde vem. No outro extremo, haverá quem argumente, até com certo desdém, que as leveduras não passam de fermentadores e que o único papel destinado a elas na enologia é transformar em álcool o açúcar existente nas uvas.

Para o chileno Felipe Toso, da Ventisquero, “em termos gerais, as leveduras são, sim, antes de qualquer coisa, fermentadores”. O enólogo, cuja monografia na faculdade foi sobre o assunto, defende que há outros fatores que são muito mais importantes na hora de fazer o vinho. “A qualidade da uva, a safra, o terroir... Tudo isso é bem mais relevante do que as leveduras, que têm uma pequena porcentagem no resultado final da vinificação”, explica.

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“Na verdade, a grande diferença é que a fermentação feita com leveduras selecionadas é muito mais previsível do que quando usamos apenas as indígenas. Até porque, em geral, são várias as leveduras existentes na uva, o que torna bem mais difícil o controle da fermentação, enquanto nas selecionadas elegemos apenas um tipo específico”, acrescenta. “Eu, pessoalmente, gosto de usar os dois tipos. E até para ter uma maior diversidade de estilos, faço vinhos em que uso só as leveduras indígenas”, completa Toso.

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Outro chileno, Marcelo Retamal, da De Martino, tem uma visão um pouco diferente da defendida pelo colega da Ventisquero. Para ele, “apenas as leveduras indígenas podem produzir um autêntico vinho de terroir”. E exemplifica: “Se você usa em um Sauvignon Blanc, por exemplo, três tipos de leveduras selecionadas e um de indígena, em quatro vinhos, você terá quatro brancos completamente diferentes, mesmo que eles venham da mesma vinha e sejam feitos da mesma maneira”, garante. “Para vinhos de alta gama, defendo o uso de leveduras indígenas, que são capazes de garantir uma maior tipicidade e um melhor alinhamento ao conceito de vinho de terroir”, continua. “Mesmo em vinhos brancos, quando há leveduras selecionadas que fermentam lentamente e a baixas temperaturas, prefiro o uso das indígenas. Acredito que elas entregam um vinho mais honesto, refletindo o terroir e o ano de forma mais autêntica. Seja bom ou ruim”, enfatiza.

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“No entanto, deixando o romantismo de lado, sabemos que a grande maioria das vinícolas não vive apenas de vinho de terroir. As leveduras indígenas têm um arranque de fermentação bem mais lento, ocupam os tanques por mais tempo. Fica inviável produzir vinhos de volume e preço mais baixo dessa forma. E cerca de 90% dos vinhos comercializados são vinhos mais populares”, argumenta Retamal.

Com leveduras diferentes, uvas de uma mesma vinha resultarão em vinhos diferentes

Uma ou outra? Ou as duas?

Apologista de uma “enologia racional”, o português radicado no Brasil, Miguel Ângelo Vicente de Almeida, da Miolo, prefere usar o que de melhor cada tipo de levedura pode oferecer. “Uso as duas. Tudo depende do estado da uva. Se ela está perfeita, sã e madura, uso as leveduras indígenas sem medo. O Sesmarias é 100% assim. Metade do Reserva Tannat 2011 é resultado de fermentações espontâneas. Agora, se a uva não está em perfeito estado sanitário e nem de maturação, aí é indispensável o uso de leveduras selecionadas”, conta.

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“No vinho a questão está na uva, no ponto de colheita. O resto é acessório. No vinho branco, com a redução brutal da matéria sólida por uma débourbage (sedimentação) a frio, a fermentação com leveduras selecionadas é importante. Num tinto com um teor alcoólico de 16 a 17%, as leveduras da espécie Bayanus são um recurso fundamental para conseguirmos a fermentação de todo o teor de açúcares fermentescíveis”, ensina. “E não podemos esquecer que todas as leveduras selecionadas um dia foram indígenas, sem contar, claro, as híbridas. Mas aí já é assunto para outra matéria, totalmente diferente”, completa Almeida.

“Não podemos esquecer que todas as leveduras selecionadas um dia foram indígenas”, diz o enólogo Miguel Ângelo Vicente de Almeida

Eduardo Angheben, da vinícola que leva seu sobrenome, reconhece que há influência no tipo de levedura usada na fermentação. “Há várias cepas distintas e que não só podem influenciar na questão aromática como na quantidade de compostos oriundos da fermentação, como o glicerol, por exemplo. Há ainda que considerar o rendimento da transformação do açúcar em álcool, que difere muito de levedura para levedura. E também a influência de alguns tipos na autólise dos espumantes”, conclui.

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Só indígenas representam o terroir?

Para Marco Pallanti, da italiana Castello di Ama, o fundamental é o resultado final. “Uso apenas leveduras indígenas, mas, para ser sincero, nunca estudei o assunto a fundo. Aqui, fiz essa opção porque, usando as nativas, tive muito menos problemas de paragens nas fermentações do que quando escolhia uma selecionada. Mas não sei dizer se apenas as leveduras indígenas são capazes de representar com fidelidade o conceito de terroir”, afirma.

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Opinião semelhante à de Pallanti tem o libanês Serge Hochar, do Château Musar. “Eu não sei se influencia ou não, mas uso apenas leveduras indígenas. Até porque não tenho problemas com as minhas fermentações, nem de arranque, nem de paragens”, afirma.

O esloveno Marjan Simcic, da Simcic Wines, toca em outro ponto da questão. “Uso apenas leveduras indígenas, pois muitas das leveduras existentes nas minhas uvas sequer estão isoladas e disponíveis nos mercados”, conta. “E no fundo também acredito que apenas as naturais são capazes de refletir com exatidão o caráter de um lugar, de como uma determinada uva cresce naquelas condições específicas de solo e clima”, defende.

“Acredito que apenas as leveduras naturais são capazes de refletir com exatidão o caráter de um lugar, afirma Marjan Simcic

Já o francês Jean-Luc Thunevin prefere a saída diplomática. “Essa é uma questão difícil, que move paixões, muitas vezes irracionais. Mas sendo bem honesto, nas grandes safras, não precisamos de nada além das leveduras indígenas. Afinal de contas, a natureza fez a parte dela”, comenta.

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“No entanto, nas safras difíceis é preciso usar determinadas leveduras para manter a qualidade do vinho”, reconhece. “Agora, nunca vi um provador, por mais experimentado que seja, que fosse capaz de reconhecer em uma degustação que um determinado vinho foi feito com leveduras indígenas ou selecionadas”, encerra Thunevin.

Protagonista ou coadjuvante, indígena ou selecionada, o fato é que são as leveduras que operam o milagre da transformação de uva em vinho. São elas que transformam, na ausência de oxigênio, o açúcar existente nas frutas em álcool e dióxido de carbono. O que, convenhamos, não é pouco.

PASTEUR

Durante um longo período da história do vinho, os enólogos não tinham a menor ideia a respeito do fenômeno que fazia o milagre da transformação do suco de uva em vinho. Era um mistério a maneira com que o açúcar do fruto virava, como por mágica, álcool. O processo de fermentação era observado na medida em que o mosto parecia literalmente ferver. Até que, em meados do século XIX, o governo francês encomendou ao cientista Louis Pasteur um estudo sobre o que fazia com que alguns vinhos estragassem com maior facilidade do que outros. Pasteur então descobriu a conexão entre as leveduras e o processo de fermentação. Foi o cientista quem primeiro observou que eram as leveduras que transformavam o açúcar das uvas em álcool e dióxido de carbono.

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