A principal região produtora da Austrália é famosa pelas castas típicas da Borgonha, mas também por blends curiosos e pratos inusitados com carne de canguru
por José Eduardo Aguiar
Do outro lado do mundo, literalmente, a Austrália é quase um mito para os brasileiros. Belas praias, gente bonita, tempo sempre quente, com muito sol e céu azul. Muito esporte radical, eventos esportivos por todas as partes, cidades belas e modernas. Opera House, Harbor Bridge, ou mesmo a bela roda gigante de Melbourne. Ícones de um país quase desconhecido.
De colonização britânica, a Austrália é famosa por seus pubs, ao melhor estilo inglês. Muita cerveja, festas e agitação nos happy hours, mas outro ponto importantíssimo da cultura desse receptivo povo se faz perceptível: a paixão e apreciação pelos vinhos nacionais.
Atualmente o sétimo país em produção de vinhos do mundo, a Austrália ainda é uma incógnita para o consumidor brasileiro. São poucas as garrafas que chegam por aqui. Uma vez em solo australiano, então, se faz obrigatório adicionar um destino "vinícola" em seu roteiro, o que certamente fará a sua viagem ainda mais inesquecível. E foi exatamente isso que ADEGA, em rara passagem pelo país. Do outro lado do mundo, a milhas e milhas distantes de "casa", não perdemos a oportunidade de conhecer um pouco sobre a viticultura desta simpática nação. Se a chance é rara, portanto, o destino escolhido não poderia ser outro: Yarra Valley, a maior região produtora do país e local das mais prestigiadas vinícolas.
Como todo bom turista, a melhor opção que nos foi apresentada era escolher um dos muitos passeios oferecidos para o mais famoso vale australiano. A uma hora de carro de Melbourne, uma das maiores e mais belas metrópoles do país, o Yarra Valley é destino obrigatório para os amantes de vinho que visitam a cidade. São diversas as opções, desde diferentes agências até diferentes roteiros, cada um com vinícolas distintas e diversos horários. Os preços dos passeios podem variar entre 150 até 1.700 dólares australianos, dependendo do pacote contratado.
Além de visitar belas propriedades e degustar os mais variados tipos de vinho, ainda é oferecido um belo almoço, com variados pratos à escolha. O mais pedido, claro, é a carne de canguru, tradicional animal australiano. Exótico, o prato surpreende pelo sabor e textura, no caso um pouco mais rígida do que as partes mais nobres da carne de boi. Para acompanhar a inusitada receita, é sugerido um intenso tinto local, com o tipo da uva variando de acordo com o cliente (Pinot Noir e Shiraz, por exemplo).
Localizado no estado de Victoria, o Yarra Valley tem mais de 50 vinícolas, cada uma com sua particularidade, mas todas muito belas e organizadas, apresentando diversos rótulos, alguns bastante incomuns, como um espumante Pinot Shiraz, por exemplo. Da janela de uma das vans da agência de viagem escolhida, podemos observar algumas das mais belas paisagens do interior australiano. Se por fotos estamos acostumados a ver as já famosas praias do país, no vale a paisagem diferente não deve em nada no quesito beleza. Montanhas, árvores por todos os lados, videiras enfileiradas geometricamente pelas propriedades, uma visão quase que "divina" para um apreciador de vinho.
A diversidade, palavra que pode muito bem ser usada para descrever toda a Austrália, também reina na região. Da vinícola menor e mais simples, com clima totalmente familiar, como a belíssima Yering Farm, à maior e mais renomada, como a Domaine Chandon australiana. Passa-se ainda por lugares como a Yering Station, que se destaca pela moderna arquitetura e ricas galerias de arte, até a Rochford que, além dos bons vinhos, traz atrações da música em grandes shows dentro de sua propriedade.
Leia mais:
+ Produção de vinho aumentou em 2018
+ Bons rótulos de Chardonnay australianos no Melhor Vinho
A Chardonnay é disparada a uva branca mais produzida na região. Por lá, é cultivada seguindo técnicas oriundas da Borgonha, na França. Quando misturada à igualmente abundante Pinot Noir, forma uma base perfeita para os mais consumidos espumantes australianos.
Outra que também merece destaque no vale é a Sauvignon Blanc, que produz vinhos vibrantes, com sabores acentuados e toques de acidez no final. No geral, são vinhos produzidos sem passagem pelas barricas de carvalho. Entre as brancas, também podese citar as igualmente especiais Pinot Gris, Riesling, Viognier, Gewürztraminer, Marsanne, Rousanne e Verduzzo, todas produzindo vinhos interessantíssimos em território australiano.
Em 2009, o calor atingiu proporções mortais, causando incêndios que atingiram os vinhedos. O dia 7 de fevereiro então ficou conhecido como "Sábado Negro"
Embora represente sempre um desafio em seu cultivo, a Pinot Noir encontrou no Yarra Valley uma nova casa, diferente da Borgonha. Ao longo dos anos, cada vez mais a essência dessa uva é compreendida no local, o que torna os vinhos produzidos mais especiais. Muito diferente das tradicionais Cabernet Sauvignon ou Shiraz, a Pinot Noir surpreende por sua delicadeza e sabor.
A Cabernet Sauvignon também é muito plantada no vale australiano, uma variedade de maturação tardia, com sabores que vão desde chocolate até o cedro ou mesmo couro. Envelhecida em carvalho francês e americano, muitas vezes é misturada com Merlot, o que representa um "show" no palato. Como os taninos sedosos são uma marca registrada das Cabernet Sauvignon do Yarra Valley, é altamente recomendável beber vinhos jovens da região, mas sem deixar de lado o potencial de guarda de um ou outro rótulo. A combinação, além de primorosa, cai muito bem com uma carne bem preparada ou um queijo dos mais saborosos.
E se o assunto é carne, a Shiraz também não pode ficar de fora. Com seus sabores de pimenta e especiarias para o anis e ameixa, acompanha bem a refeição preferida dos australianos. Uma alternativa é prová-la com o próprio canguru, servido na maioria das vinícolas do vale.
Outras variedades tintas também merecem destaque, como a Malbec, Petit Verdot, Cabernet Franc, Sangiovese e Nebbiolo. Um curioso blend de Shiraz e a branca Viognier (geralmente não mais de 5%) também é bastante típico da região.
A topografia do Yarra Valley varia enormemente, o que faz com que a região abranja uma ampla gama de tipos de solo. Na parte intermediária do vale, o solo é antigo, com argila arenosa intercalada com arenito. Já nas regiões tanto do alto como do baixo Yarra Valley, o solo é de origem mais jovem, e altamente friável, trazendo coloridos solos vermelhos de origem vulcânica.
Já o clima, pelo menos em relação às demais regiões vinícolas australianas, é mais fresco. Para se ter uma ideia, é mais fresco que Bordeaux, porém mais quente do que Borgonha. A altitude varia de 50 a 400 metros e as épocas mais chuvosas são o inverno e a primavera, com índices de 750 a 900 mm. No verão, o clima é relativamente fresco, seco e úmido, com uma limitada influência marítima, como a temperatura mais baixa pela manhã. A colheita tem início normalmente em março, predominantemente com Pinot Noir, e termina no início de maio, com Cabernet Sauvignon.
Se o clima quente sempre representou um pequeno incômodo para os viajantes que passavam pelo Yarra Valley, em 2009 o calor tomou proporções literalmente mortais. Em 7 de fevereiro, um sábado, a temporada que já era uma das mais quentes da história atingiu o limite, o que resultou na maior série de queimadas da história do país. O incêndio tomou conta da região, quase que integralmente dedicada à agricultura, devastando plantações e acabando com a vida de mais de 200 pessoas. O dia, então, passou a ser conhecido como o "Sábado Negro", e além das vítimas fatais destruiu mais de 700 casas no estado de Victoria.
Embora o clima extraordinariamente quente seja a causa mais provável, a polícia local chegou inclusive a levantar a hipótese de que pelo menos 400 focos do incêndio tenham sido causados de forma criminosa, mas nada foi comprovado. Mesmo com o lamentável episódio, a exportação de vinhos australianos em 2009 cresceu 9%, atingindo 764 milhões de litros, com um valor estimado em mais de 2,3 bilhões de dólares australianos.
Embora a Austrália conte com outras três importantes regiões vinícolas, Hunter Valley (próximo a Sydney), Barossa (perto de Adelaide) e Margaret River (próximo a Perth) - além da Tasmânia -, é o estado de Victoria o mais antigo produtor e historicamente a região que mais produz vinhos no país. Lá, tem-se registro de vinhos sendo elaborado desde o início do século XIX, e já em 1890 o estado representava 60% de toda a produção vinícola australiana. O mercado seguiu crescendo até 1920, quando a crise econômica que atingia não só o país, como todo o mundo, forçou um declínio na agricultura local. Sendo assim, a última safra registrada na época foi em 1921, mesmo com o vale sendo uma das poucas regiões no mundo que não sofreu com a famosa praga da filoxera.
Passaram-se quase 40 anos até que o interesse pela viticultura voltasse a emergir na região. Imigrantes europeus oriundos de países afetados pela II Guerra Mundial chegaram a Victoria e, a partir de 1960, a produção de vinhos voltou a ganhar força no local, com plantações de diversos tipos de uvas (até hoje uma marca dos vinhos australianos). Após algumas décadas de evolução gradual, foi nos anos 1990 que os investimentos chegaram com mais força à agricultura, principalmente no que diz respeito aos vinhos, e logo a produção e o mercado se aqueceram em uma velocidade impressionante.
Hoje, a Austrália se encontra no top 10 dos produtores do mundo, mesmo com a maioria de seus rótulos sendo desconhecidos por aqui. Uma viagem para o outro lado do mundo, claro, não é uma coisa muito comum. Porém, para os que pensam na possibilidade, mas ainda seguem receosos, o conselho é não pensar duas vezes. Além do sol, céu azul e belas praias do imenso e encantador litoral australiano, o interior do país e, principalmente, suas regiões vinícolas, valem a visita. Arrisque-se, e surpreenda-se!
Veja também: